segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

O coletor menstrual – ou pequenos desastres



Até uns dois meses atrás eu nunca tinha sequer ouvido falar em coletor menstrual. Não tinha a menor ideia do que era. Você não tem? Então a parte objetiva da explicação será um oferecimento de Wikipedia.

Leu lá no link? Beleza. Eu descobri a existência dos coletores fuçando em links de blogs feministas (mas não vou lembrar onde exatamente pra dar o crédito, desculpem). Fiquei enlouquecida. Como assim eu não tinha ouvido falar daquilo? Como assim não precisar mais comprar absorvente? Como assim é seguro, a gente não sente que está lá, e é ecológico. Etc, etc. Fucei mais links, li bastante coisa, e resolvi experimentar.

Antes de contar minha experiência, um comentário importante: o fato de não ser descartável te causa nojo? Ok, você não está sozinha. Mas vamos explorar isso. Nosso corpo não é sujo. O sangue menstrual só tem aquele cheiro ruim depois de começar a se decompor, já no absorvente, por conta do contato com o ar. Ora, o coletor, pra funcionar corretamente, impede o sangue de ter contato com o ar, porque forma uma barreira. Ele deve ser sempre manipulado com as mãos limpas, lavado quando for esvaziado e fervido ao início e final de cada ciclo menstrual num recipiente exclusivo. Também é desnecessário dizer que é feito de um material inerte, ou seja, que não colabora para a proliferação de bactérias. Pessoalmente, não sei como isso pode ainda ser nojento, mas eu sei que a noção de repulsa varia muito de pessoa pra pessoa. Só convido quem passar por aqui a questionar certos preconceitos e não julgar quem pensa diferente, beleza? Você pode achar nojento pra você, mas eu não acho e continuo sendo uma pessoa bem limpinha.

Enfim, comprei o meu aqui. Carinho (R$70,00), mas chegou numa boa. O alto custo de aquisição deve ser encarado como um investimento inicial, pois dada a durabilidade do coletor, o que você economiza em absorventes compensa e muito (claro, isso se você não for nó cega como eu, mas eu explico depois). Tava super empolgada. Comecei a usar e pensava escrever sobre ele aqui assim que terminasse o meu ciclo menstrual. Como tinha lido bastante sobre, já sabia que existe um pequeno desconforto ao tirar até a gente se adaptar, que ele não deve ser colocado muito no fundo como a gente faz com absorvente interno, enfim, tinha algum contato com os macetes. E os primeiros dias não poderiam ter sido melhores. Nenhum problema pra colocar, nenhum vazamento, não o sentia dentro de mim e adeus cheiro desagradável de absorvente usado no lixo do banheiro. A felicidade existe.

Hoje era o teste de fogo. Isso porque eu tenho um ciclo meio esquisito. Parece que 70% do fluxo desce num intervalo de algumas horas no meio do ciclo, e antes de depois é bem pouco. Daí que o momento da enxurrada foi a manhã de hoje. O coletor tem capacidade para 40ml* e li por aí que, como o volume de fluxo por ciclo menstrual é de 80 ml dividido por todos os dias, é possível ficar com o coletor entre 8 e 12 horas sem trocar. Pois bem, eu me troquei às 7:30 da manhã e as 11:00 ele estava quase cheio. Joguei o sangue na privada e fui lavar o coletor com a ajuda da ducha higiênica que temos em um dos reservados do banheiro. O jato estava fortíssimo, o coletor escorregou da minha mão e sequer o vi na privada: com a força do jato foi pra fossa direto. Como eu estava toda empolgada com minha nova aquisição, sequer tinha absorventes na bolsa: tive que fazer aquele bolinho de papel higiênico e correr na farmácia mas próxima (caríssima) e comprar um pacote de emergência. Setenta reais fossa abaixo que eu praticamente não usufruí e a imensa frustração de estar usando moddess de novo. :\

Apesar da minha primeira experiência atrapalhada, recomendo muito. Tô muito puta com o dinheiro que foi pela privada, mas assim que passar o bode e o medo de fazer burrada de novo, vou voltar a comprá-lo (tô toda trabalhada no 13º, mas eu sou pãodura e a raiva de gastar com isso de novo vai me impedir de resolver isso hoje). O coletor é prático e mais confortável que o absorvente interno, e muitíssimo mais barato (uma caixa de tampax custa uns 10 reais, né?) a longo prazo. Se como eu você ficou curiosa, leia, pesquise, pergunte. Desconfie sempre do senso comum, até nas coisas pequenas. É muito interessante pra indústria que a gente ache que higiene = descarte. Fico pensando que os coletores poderiam ser muito mais baratos se a escala de produção fosse maior, e em quanto a indústria farmacêutica perderia com isso. Penso também no tabu que é pra muitas mulheres manipular a região genital, em quanto a gente perde não conhecendo o próprio corpo. Não tô afim de me aprofundar nisso agora, nem teria conhecimento suficiente pra dar conta, mas toda essa relação da associação do sangue menstrual à sujeira e o tabu em relação a penetração de qualquer coisa em nossas vaginas que não seja o pênis do sacrossanto marido me fazem pensar na questão do corpo feminino como objeto de disputas políticas. Toda a construção cultural sobre como a gente deve lidar com um processo natural como a menstruação é uma questão antropológica importante, ao meu ver.

(E este final inspiradinho foi só pra eu fingir pra mim mesmo que sou uma mulher inteligente, não uma anta que deixa 70 pilas iram com a descarga. Ô, raiva!)

*Update: no site que vende o Meluna eu vi que a capacidade do coletor médio, o que eu tinha, é só de 15ml (logo, eu não tenho uma semi-hemorragia, só um ciclo forte - que bom). Mas na internet vi comparações com outras marcas e parece que o Meluna é o menorzinho deles, que o grande do Meluna é do tamanho do pequeno de outras marcas. O meu próximo com certeza será maior, pra ter um pouco mais de tranquilidade.

**Update 2: Trocando informações sobre o assunto num fórum feminista, fiquei sabendo que dá pra comprar muito mais barato pelo eBay. Segue um link pra um modelo por 18 dólares: aqui.

(Obrigada, Vanessa! =D

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Sobre ferros de passar - entre outras coisas



Lembram de mim? Pois é, esse blog está abandonado não por falta de assunto, nem por conta do trabalho da pós – que aliás, eu escrevi só mais 2 páginas além do que tinha feito no semestre passado e entreguei. Bateu foi um cansaço enorme de um ano corrido e sem férias (licença de 10 dias pra fazer uma cirurgia e ficar de molho não é exatamente férias, né?), e o saco cheio de um trabalho que não chega ser ruim, mas também tá longe de ser animador. Ok, eu sobrevivo, e pra compensar, senta que o assunto é longo.

Segunda fui ao shopping, antes dele virar um inferno, comprar os presentes de Natal. Tenho duas sobrinhas (do marido, na verdade, mas já adotei, né?), com menos de 1 ano de diferença entre elas. São primas, bem diferentes tanto fisicamente quanto na personalidade, mas tem em comum a fofurice extrema – ok, corujice mode off. E eu acho uma dificuldade comprar presentes pra elas no shopping. A imensa maioria dos brinquedos é muito sexista. Nas lojas, tirando os brinquedos para bebezinhos, os outros são separados por gênero. E, puxa, vou chover no molhado aqui, mas como isso é carregado de ideologia. Aos 3 anos de idade essas crianças são doutrinadas pra ocupar seu lugar no mundo. E isso acontece não só com as meninas, claro. Com os meninos é a mesma coisa. Porque tantos carrinhos, gente? Quando crescerem, já vão ter internalizados que carro = pernas. Ou, em muitos casos, carro = pau. Mas voltando às meninas. A vendedora nos ofereceu um joguinho cujo nome deveria ser algo do tipo “beauty make-up”, algo pra ensiná-las a se maquiarem desde cedo. E também um conjunto de ferro + tábua de passar. Pausa aqui. Nada contra a ideia de brincar de panelinha, por exemplo. Comidas são lúdicas, claro, e emular tarefas de adulto não é necessariamente ruim. Mas duvideodó que alguém desse um jogo de ferro + tábua pra um menino, né?

Daí, sou obrigada a contar da minha experiência na França. A menina que eu cuidava lá era bem mimada, ganhava muitos brinquedos. Pilhas deles na verdade, e além disso acho que tinha mais livros aos 6 anos do que eu do que eu tenho aos 30. Mas uma coisa eu achava o máximo: ela era estimulada a brincar de tudo. Nada era proibido. Ela tinha algumas bonecas, tinha panelinhas, mas tinha também um castelo medieval Playmobil. E tinha um joguinho de ferramentas mecânicas de plástico para montar carrinhos. No Natal que eu passei lá, ela disse que queria, entre outros presentes, uma fantasia de princesa. E a mãe levou-a a loja pra escolher a fantasia mais bonita. Mas ela viu do rei Arthur, que vinha com espada e escudo, e gostou mais. Nada de “isso é de menino, não pode” nem de “mas vestido de princesa é machista e fútil!”. Liberdade pra descobrir o mundo, sabem como é? Lembrei dela na segunda-feira porque a mãe me contou uma história engraçada uma vez. A professora tinha achado curioso porque a Lola viu um ferro de passar num livro e não conhecia, apesar de ser uma menina tão viva e inteligente. A mãe explicou pra professora que era natural, porque a área de serviço era no porão, a Lola tinha medo de ir lá, então não tinha contato com o ato de passar roupas mesmo. Daí a professora retrucou: “ué, mas ela não tem um ferro de passar de brinquedo?”.

Bom, neste ponto eu mudo um pouco o assunto. Eu não sei passar roupa. Sou péssima, mesmo. Então compro roupas que não amassam, coloco pra secarem esticadinhas no cabide, e vamos vivendo. Marido não precisa trabalhar de camisa social, então apesar de termos uma tábua em casa, ela é pouco utilizada. Ah, sim, temos uma faxineira trabalhando pra gente a cada 15 dias. Não vou me aprofundar aqui na questão social do trabalhador doméstico, mas cabe dizer que apesar de ser muito crítica do modelo de desigualdade social brasileiro que permite às pessoas terem semi escravos, não me sinto culpada por ter alguém trabalhando aqui em casa. E um dos motivos, entre outras coisas, é porque não peço a ela pra fazer nada do que eu mesma não faria. Ela não é mão de obra desqualificada fazendo coisas que eu sou muito nobre para fazer. Então, se passar roupa não é importante a ponto de eu não fazer isso quando não posso pagar alguém pra fazê-lo, ela também não faz. Questão de coerência, pra mim.

Mas olhem só, eu penso assim porque minha agenda tem algumas prioridades. A gente vai amadurecendo e vai dando valor a algumas coisas, deixando outras de lado, e tentando conciliar tudo neste mundo pouco razoável. E na minha agenda pessoal, o feminismo e justiça social não podem se chocar, por exemplo. Se a condição pra que eu seja feminista é ter uma semi escrava em casa, não funciona. Então, essas duas coisas estão acima do meu relacionamento com meu marido, até. Se ele achasse 1) que eu sou obrigada a fazer tudo sozinha, porque eu sou mulher ou 2) serviço domésticos são trabalhos inferiores a serem desempenhados por pessoas inferiores, ele não seria meu marido. Bem, só depois disso tudo vem a qualidade das tarefas domésticas. Logo, quando por qualquer motivo estes valores não podem ser conciliados, a casa fica uma zona. Sem a menor culpa porque apesar de no dia 8 de março louvarmos A Mulher, este ser multitarefa que dá conta de tudo, eu sou uma só e vim ao mundo pra ser feliz.

Eu não sou a fodona desencanada. Esta tranquilidade não é inerente. Eu achava sim as casas na Europa muito porcas, até entender que lá custa caro pagar alguém pra limpar, porque não há essa cultura escravista daqui, então o padrão de exigência passa a ser outro. Ok, as pessoas podem viver numa casa com janelas empoeiradas, qual o drama afinal? Logo quando virei dona-de-casa, no sentido de alguém que não pode delegar a outrem a manutenção do espaço em que vive, estava falando com minha mãe ao telefone e reclamei de cansaço de trabalhar o dia inteiro e ainda ter coisas pra me preocupar quando chego em casa. Ela me disse que, se eu tava cansada, “não precisava limpar casa todo dia, né?”. E eu explique a ela que além da grande limpeza quinzenal, essa casa só vê um aspirador de pó eventualmente, quando um de nós se incomoda muito com a sujeira, que o cansaço era por estas coisas que não podem ser adiadas, tipo fazer supermercado e cozinhar. Achei a conversa engraçada na hora, mas ela é ilustrativa de como a dominação funciona. Meu marido não precisa me cobrar nada. A cultura , representada pela minha mãe, me cobra. Se a gente for receber uma visita em casa, serei eu a me preocupar o que vão pensar se encontrarem tudo uma zona, porque todas as propagandas de material de limpeza tem uma mulher como protagonista.

Enfim, desencanar desta imposição dá muito trabalho, mas é preciso. E fica muito mais difícil se dar conta de que não é obrigatório passar roupas sempre, se aos 3 anos de idade alguém te oferece um ferro e uma tábua como presentes. Desta vez compramos presentes iguais pras duas: uma maletinha de médico, com estetoscópio, seringa, termômetro e mais umas coisinhas. Marido se derreteu imaginando uma destas pequenas médicas. Queremos muito que elas cresçam num mundo de possibilidades, em que passar roupa seja uma tarefa chata, não um destino inevitável.

* a imagem que ilustra este post veio daqui, e o link eu recebi via twitter do Alex Castro (@alexcatrolll)

domingo, 21 de novembro de 2010

O post que se fez sozinho

Tô eu aqui na poltroninha nova, enrolado, tomando vinho branco, esperando o jogo do Corinthians começar e pensando que deveria estar estudando.

Daí pensei que o tema é importantíssimo, mas que não tinha nenhuma inspiração para escrever sobre isso (e por isso é difícil seguir proposta de blogagens coletivas, porque inspiração não é negociável):



Mas eu disse que tava de bobeira. Daí fui ver uns vídeos no youtube. E fui ver umas coisas de umas bandas não conhecidas aqui no Brasil, mas que eu conhecia porque dava aulas de espanhol. E achei esse aqui:



E, puxa, achava divertido há uns anos atrás, mas nunca tinha prestado atenção na letra, né? Daí, no final fez-se o meu post. Saca só como termina a música:

"Por eso ahora tendré que obsequiarte
un par de balazos, pa' que te duela.
Y aunque estoy triste por ya no tenerte
voy a estar contigo en tu funeral."

Balazos é bala, gente. Ingrata, você me deixou e eu te mato. Não preciso nem comentar que a violência contra a mulher, o tal amor passional, taí, glamurizado, engraçadinho. Pra ficar mais signficativo, este é um grupo mexicano, e é no México que fica Ciudad Juarez, cidade tristemente célebre por sua violência contra a mulher.

Deveria estar contente porque fiz este post em 10 minutos? Tô não. Tô indignada porque violência contra a mulher é um assunto tão corriqueiro que a gente esbarra com ele até quando não tá procurando.

sábado, 20 de novembro de 2010

Dia da Consciência Negra – e respeitando o timing

Eu sou uma moça muito desligada e achava que tinha de ter escrito o post que pretendia na semana passada por conta das discussões sobre o racismo na obra do Monteiro Lobato, ainda mais de ler este post aqui no Idelber. Mas aí ontem veio de novo a inspiração e caiu a ficha de que oi, o dia da Consciência Negra é hoje, zé mané. Tem timing perdido não. Pra melhorar, O Idelber colocou outro texto fera lá, da Ana Maria Gonçalves. Se você ainda não leu, recomendo fortemente.

Enfim, pra começar eu preciso contar que minha pela é branca. Tirei lá minha foto do twitter, e se alguém não viu antes, descrevo: sou um tipo não branca germânica, mas branca mediterrânea: pele branca amarelada, cabelos e olhos bem escuros (e um nariz grande que faz o povo achar que sou descendente de árabes – mas não sou). Meu fenótipo é uma combinação de vários outros, como acontece com boa parte dos brasileiros. Minha mãe tem a pele mais escura (e um nariz delicadinho). Minha avó tinha a pela ainda mais escura, nariz e lábios finos, cabelos bem pretos e bem lisos. Minha bisavó era, pelo fenótipo, negra. Mas não só por ele: era parteira e benzedeira numa cidade do interiorzão de Minas. E fumava cachimbo. Sim, o povo na família não diz isso assim - depois comento sobre – mas vó Joaquina era a própria preta velha. Dada a miscigenação, tenho parentes de todas as cores, e meu irmão tem olhos verdes. Tem uma foto sensacional do meu irmão pequenininho, loirinho, com a bisa preta, que eu adoraria ter digitalizada pra ilustrar este post. Se achar, depois eu subo pra cá.

Bom, então, do lado materno da família, as mulheres tinham pele mais escura conforme a idade (minha avó paterna era branca, e morreu antes de eu nascer, então não era referência). Tenho claramente a memória de que em algum momento eu acreditei que seria negra quando fosse velha. Sério. Pode parecer surreal, mas imaginava que quando fosse adulta seria mais morena como minha mãe, e aos 80, negra como a bisa. Lógico que isso deve ter durado pouco e logo percebi que, olha só, há vovós por aí que são branquinhas.

A outra informação importante (vai ficar longo isso...) é que tanto meu pai como minha mãe são de famílias muito pobres, com muito pouca instrução. Mas o meu pai fez faculdade, teve a vida toda um emprego com uma remuneração bacana que o permitiu dar uma vida confortável para a família. Eu e meu irmão estudamos em colégios particulares uma parte da vida. E durante alguns anos estudei numa escola com um perfil elitizado, mas cujas mensalidades cabiam no bolso do meu pai com algum sacrifício. Bom, um dia, quando eu tinha por volta de uns 9 ou 10 anos, a professora de Estudos Sociais nos deu um trabalho interessante. Tínhamos que contar a história da nossa família, entrevistando nossos avós para saber sobre seu passado. Mas aí vinha o detalhe: o foco era o país de onde veio a família. Portugal, Itália, Japão, Líbano, enfim, estes lugares que exportaram gente pra São Paulo. Daí fui eu explicar que olha, eu até sei que tenho lá um bisavô português, alguém na família disse que tem um espanhol, mas minha avó veio de Minas mesmo. Não, não servia. Tinha que ser estrangeiro. E me sugeriu entrevistar outra pessoa que viesse do mesmo país. Acabei, muito a contragosto, entrevistando uma vizinha espanhola. Sem nenhuma identificação: a Espanha não dizia nada pra mim. Nem sabia o que era paella até a entrevista – comida de antepassado, pra mim, era frango com quiabo e angu.

Meus pais não se deram conta do problema na época, não protestaram. E não vou dizer que tenho trauma porque não é verdade: esse caso ficou mais ou menos esquecido até a minha licenciatura, quando em alguma matéria vimos a questão dos "temas transversais", que devem ser abordados em todas as disciplinas. Só então eu me lembrei. De novo, não fiquei traumatizada, mas me lembro do desconforto na época. De me sentir a orfã, aquela que não tem passado e precisa pegar emprestado do da vizinha. Fora isso, hoje tenho a consciência de que minha avó, que vivia comigo na mesma casa, não teve o direito de ter sua história reproduzida e valorizada - o que é muito mais revoltante do que meu incômodo. Dentro de casa sempre imperou o respeito e a tolerância, mas boa parte da família é racista – contavam piadas racistas e diziam que a vó e a bisa eram “morenas”. Mesmo a minha avó dizia que “de preta, já basta eu”. A falta de autoestima de quem aprendeu que, como negra, pobre e sem instrução, não tinha valor. E eu me dou conta do quanto é perversa uma atividade escolar que reforça isso. Bom, desnecessário dizer que não havia crianças negras na turma. Mas eu ouso chutar que, se houvessem seriam convidadas a entrevistar o português da padaria, com aquele papo de que todos descendem de portugueses também, né? O “embranquecimento” da população, tão defendido no começo do século XX.

A lembrança e a análise deste evento me ajudaram a amadurecer a minha defesa da cotas raciais. Eu, menina de pele branca e cabelo liso, tive o meu passado próximo discriminado e fui obrigada não a mentir (é, eu sou descendente de portugueses e espanhóis e alemães até, também) mas a editar a minha história pra que ela fosse “aceitável”. E na ocasião nem me passou pela cabeça que a escola estivesse errada: o problema era meu, ué. Fiquei imaginando então como é para a criança negra, aquela que só aprende que seus antepassados foram escravos e que a África é, olha só, a fornecedora de escravos - ponto. No geral não aprende nem de onde estes escravos vinham, de que países, a cultura deles, etc. Isso que chamam de “mesmas oportunidades para todos” os que defendem a meritocracia do vestibular sem cotas?

Enfim, o papo caiu nas cotas, mas nem é essa a questão. Fica muito claro pra mim que quem fica falando em “ditadura do politicamente correto” tá pensando só na sua infância idílica. Porque na minha infância nada romântica a escola me disse que a vovó ideal era a Dona Benta – mas a que eu tinha em casa, que teve doze filhos, trabalhou em garimpo grávida e não teve acesso à educação formal, lembrava mais a tia Anastácia. Minha avó já morreu, mas por respeito a ela e desagravo ao fato de que sua história não foi devidamente reconhecida em vida quando deveria, eu só posso condenar quem relativiza o racismo. Eu prefiro a preservação da autoestima das crianças negras à elevação da Emília a cânone intocável.

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Um post de links requentados, basicamente

Daí que eu planejei escrever um post bem bacana na sexta, antes do feriado. Cheguei cheia de idéias, mas aí olhei pra cara do marido e... e outras prioridades tomaram a frente - se é que vocês me entendem. Resolvida a prioridade do casal com pouco tempo juntos, passamos à pizza, marido abriu um vinho e duas taças depois eu peguei no sono. Soninho justo, bem amado e bem alimentado - às 10 e meia da noite. É, pode chamar de velha cansada.

Daí fui atropelada no últimos dias por isso (não com a mesma intensidade, mas da mesma natureza). Pouquíssima vontade de escrever. Quando a vontade reaparecer, vou ter que usá-la pra adiantar meu trabalho da pós, já que eu tenho que entregá-lo um pouco mais adiantado no dia 4 de dezembro. Ou seja, talvez eu suma, ou só faça post mequetrefes assim por uns tempos. Desculpaê.

Mas não podia deixar de agradecer à Glória e a Mari Biddle pelo selinho. Eu já havia recebido este mesmo selo há alguns meses e repassado à alguns blogs. Então, só vou retribuir a gentileza acrescentando o delas a lista, tá?

É isso.

domingo, 7 de novembro de 2010

Diversos microtemas sem nenhuma profundidade

Preguiça de escrever, mas não gosto de deixar tudo abandonado. Então, microtemas:

Algumas mulheres resolveram fazer umas fotos engajadas e sensuais e criaram uma página no Facebook chamada “gostosas pró-Dilma”. Claro que muita gente achou de mal gosto, machista e tal. Daí no Uol, noticiam a coisa tentando associá-la ao Serra pedindo ajuda pras “meninas bonitas” de Uberlândia pedindo votos pra ele . Como se fosse a mesma coisa. Como se fosse incoerência chamar o Serra de machista e postar uma foto “sensualizando” pró Dilma. E não é. A Dilma não pediu pra ninguém mostrar o decote pra fazer campanha. Muito menos sugeriu que suas eleitoras insinuassem trocar favores sexuais por votos. Mas as eleitoras da Dilma (e as do Serra, claro) são mulheres donas de seus corpos e de sua sexualidade e se resolveram misturar com política, foi por decisão própria, não por apelos externos. Sim, a gente tem o direito de não gostar se quiser. E o Serra também deu uma sugestão, não uma ordem. Mas não é a mesma coisa, nem de longe. A autonomia da mulher é a questão. Eu dispôr do meu corpo é uma coisa. Você achar que pode dispor das minhas vontades como capital político, é outra bem diferente.

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Sexta-feira minha amiga Ma, que mora na França, veio jantar em casa. Ela ainda não conhecia o apê que eu divido com o marido. E foi tão engraçado que ela trouxe o Arthur, seu filho de 15 meses. E tomaram conta da casa. Toda uma outra dinâmica. Fosse outra pessoa, talvez eu achasse espaçosa. Mas é a Ma, e a Ma pode tudo na minha casa: já entrou dizendo que precisava dar um banho no menino, ficou descalça, pediu pra gente tirar a mesa de centro (que é dela, aliás...) e o tapete para ele não cair e abrir espaço pro cercadinho portátil, me colocou pra lavar mamadeiras, deu fralda de cocô na minha mão pra eu jogar no lixo, fez a Lu dar mamadeira pro pequeno. Enfim, ficou a vontade. Nada mais gostoso do que alguém que a gente ama ficar a vontade na nossa casa. Adorei. Uma coisa ficou cristalina: a vida com crianças é outra. Parece boa também, mas é bem diferente, e cansativa. Por enquanto gostamos muito da nossa como está, então contracepção é bom e fazemos uso. Bem engraçada essa fase em que os amigos (e no caso do marido, os irmãos também) começam a ter filhos e sua vida social se divide entre a turma do descompromisso a turma das fraldas.

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A Ma contou um pouco sobre seus perrengues na França. Ela chegou lá em 2005, mesma época que eu. Ficou, casou, fez um master, já trabalhou, enfim, tá habituada. Mas de uns tempos pra cá tem ficado de saco cheio da condição de estrangeira, a mesma que me deixou de saco cheio em poucos meses. Ela contou que tem vontade de clinicar na França (ela é psicóloga), mas como nossa faculdade aqui não tem TCC, precisa entregar uma memoire pra conseguir sua licença. Até aí, beleza, a gente já sabe como funciona. Ela procurou uma instituição do tipo ensino à distância, pra fazer um curso on-line de psicologia do trabalho pra adquirir algum conteúdo enquanto faz o memoire. De novo, ela não precisa estudar mais, bastaria entregar o trabalho. Chegando pra fazer a matrícula, cismaram que ela não tem license. License, pra quem não leu lá na Amanda ou na Luci, são os 3 primeiros anos de faculdade, sem TCC. A Ma se formou em psicologia no Brasil (5 anos), começou um mestrado aqui mas não chegou a terminar (2 anos) e fez um mestrado em administração hospitalar na França (2 anos). Toda a documentação explicando isso. Daí ela chega lá, dizem que não, ela não pode, e quando ela vai entregar a documentação do Ministério explicando a equivalência da formação dela, a simpática secretária diz que está fazendo greve, não pode analisar documento nenhum, e que só estava lá pra adiantar trabalho atrasado. Nonsense total.

Olha, sempre que você ouviu que fulaninha casou com estrangeiro e se deu bem, releve muito. Se a ambição da fulaninha era só viver fora do país e ter um cara par pagar as contas, pode ser que tenha se dado bem mesmo. Mas se fulana quer estudar, trabalhar, fazer algo que a realize, reconsidere. Ela pode ter que ficar longe das pessoas que amam, enfrentar toda dificuldade de estar numa cultura diferente, sofrem com a língua, e depois de anos lá e muitos anos de estudo de nível superior ser encarada como a estrangeira que tem que provar que fez faculdade. Haja saco. Um beijo pra Amanda e pra Luci, que estão nesse barco. E pra Mari Biddle, que não está na França, mas imagino que passe perrengues parecidos.

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Por fim, receitinha, porque este é um blog variado. Pra sobremesa do jantar de sexta, bati no liquidificador 400g de queijo branco fresco, creme de leite, um pouco de leite condensado (meia lata, não mais do que isso) e coloquei gelatina incolor diluída em 5 colheres de água quente. Dormiu na geladeira e no dia seguinte virei goiabada cremosa (mas dá pra derreter a goiabada em pedaços no fogo com um pouco de água). O povo adorou, mas a quantidade era muita e sobrou. E agora me engajei na árdua tarefa de acabar com essa sobremesa simples no feitio mas luxo no sabor. Recomendo a quem quer servir algo simples mas que pareça mais elaborado do que abrir uma embalagem.

domingo, 31 de outubro de 2010

=D

Não, o país não deixará de ser machista em 1º de janeiro, tal qual os EUA não deixaram de ser racistas. Mas é um passo importante, pra quebrar paradigmas. Para as novas gerações crescerem acostumadas às novas possibilidades. Disse no twitter, disse em comentários por aí e repito: eu nasci num país governado pelo general Figueiredo, que gostava mais de cavalo do que gente. E hoje vejo uma mulher divorciada ser eleita, apesar de uma campanha machista retrógrada apoiada pela imprensa. É um outro país, não há como negar. Por ele, pelas possibilidades que ele traz, eu comemoro.

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

O (não) peso das palavras

Acho que eu nunca escrevi sobre este tema, embora seja muito de meu interesse. As sutilezas dos significados que um significante pode ter (pra quem não é familiarizado: significante é a palavra sapato, significado é o objeto sapato). Uma palavra pode ter diversos pesos, impactos, provocar reações as mais diversas dependendo de quem a diz ou de como a diz. Por exemplo: referir-se a alguém carinhosamente como “meu preto” não tem nada a ver com usar a cor da pele como forma de insulto. Só quem é muito desonesto intelectualmente não aceita isso, que o contexto, se não diz tudo, diz muita coisa ao menos.
Aconteceu uma coisa engraçada esse final de semana. Eu não sabia que uma (nova) amiga era lésbica. Daí perguntei pra galera: “só eu não sabia que fulana é sapata”? Todo mundo riu. E depois eu comentei com a própria: “fulana, só eu não sabia que você era sapata!”. E ela respondeu, dando risada: “ok, me apresento de novo, prazer, sou a fulana, e sou sapatão”. E todo mundo riu mais ainda.
Meu primeiro contato próximo com a homossexualidade foi quando uma amiga da escola, que até então se relacionava com meninos, voltou das férias namorando uma garota. Tínhamos 16, 17 anos. Aquilo me intrigou um pouco, como tudo o que é novo. Depois me acostumei, mas lembro que achava a palavra “sapatão” super pejorativa. Semana passada eu ouvi, em contextos diferentes, duas mulheres se apresentando como “sapatão”, de uma maneira extremamente bem humorada. Uma delas, na verdade, disse que era “sapatã” - achei bem fofo. Então, venci o meu preconceito com o termo, chamei a amiga de sapata, e ela entendeu que, por sapata, eu tava dizendo “uma mulher que gosta de outras mulheres”, nada além.
Eu sempre achei extremamente subversivo isso de se apropriar de uma palavra teoricamente ofensiva, assumi-la, e devolver para um interlocutor como um enfrentamento, porque você desarma o preconceituoso. Sempre lembro da tal mesa redonda com profissionais do sexo no Fórum Social Mundial, que eu já mencionei aqui. Mulherada dizia: “olha, eu sou puta, gosto de ser puta, gosto muito de fazer sexo e ainda ganhar dinheiro pra isso.” Esqueçamos a discussão feminista sobre a prostituição neste momento. Quando alguém chama uma mulher de puta e ela responde, de cabeça erguida, “sou puta mesmo, e daí?”, ela desmontou o ataque. E eu acho isso lindo.
Tem um neologismo que eu uso de uma maneira bem humorada, mas que o machismo considera ofensa gravíssima: periguete. Mas eu só uso porque, na minha cabeça, registrei “periguete” como a mulher gostosa que sabe que é gostosa e adora ser gostosa. Eu não coloco nenhum julgamento moral aí. Só que, né? Preciso tomar cuidado pra usar, porque eu não vivo em Marte. Se eu me refiro a uma mulher como “periguete”, meu interlocutor pode achar que eu tô condenando, e eu não sou assim. Tem um caso engraçado de uma amiga linda e muito bem-sucedida, cargo alto em multinacional e tudo, que usa este termo pejorativamente, fala “eu não sou uma periguete qualquer”. Mas ela tá sempre usando roupas que chamam muito a atenção para seu (lindo) corpo. Sempre “vestida para matar”, decotão, roupa justa, maquiagem pesada, microssaia - em 10 anos de amizade, nunca a vi de jeans, camiseta e tênis. No dia em que eu a apresentei ao meu marido (então namorado), ela usava uma blusa meio transparente, sem sutiã, “farol aceso”. Bem periguete, segundo minha definição. Lógico que ele olhou os peitos dela. Até eu olhei, né? E nada demais, como ele é um cara bacana, olhou, achou gostosa, e não inferiu nada sobre ela só por isso. Acho que ela não é menos respeitada por ninguém por conta da maneira como se veste: é inteligente o suficiente pra se afastar gente desrespeitosa, e pra deixar claro que sim, ela é gostosona, sim, você pode olhar e não, ela não é mero objeto de apreciação, embora goste muito de ser admirada. Mas o engraçado é que faz este julgamento sobre outras mulheres. Sei lá qual o critério dela, mas acho graça.
Post sem pé nem cabeça. Só que pra dizer que, oi, você pode ser periguete, você pode ser sapata, você pode ser tudo, sua linda. O que não pode é alguém te desrespeitar por conta disso. Machismo é achar que existe um padrão aceitável de conduta para uma mulher, e que todo o resto é condenável.

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Leituras Feministas - Deslocamentos do Feminino

Este o nome do livro originado da tese de doutorado da Maria Rita Kehl, que eu tinha prometido pra Rita comentar, já que ela leu Madame Bovary não tem muito tempo. Prometi isso em setembro ainda, quando o Corinthians era líder do campeonato e a gente nem sonhava que a eleição ia virar essa baixaria. Tipo, parece que foi o ano passado. Nesse “não tem muito tempo” a Rita já deve ter lidos mais meia-dúzia de livros (ok, exagerei), a autora já entrou e saiu dos TT's do twitter e, bom, nada do meu post. Veio o segundo turno, o desânimo, semana que vem vou me matar de trabalhar num evento, tenho que ler 4 livros e avançar um pouco na minha monografia e, se enrolar muito, nunca mais escrevo sobre isso. Mas divago. Você não veio até aqui pra ler mimimi, né? O post já vai ficar longo sem este parágrafo altamente dispensavel... Preparem-se para um leitura confusa (no mínimo).

Neste livro a autora analisa a suposta identidade feminina do ponto de vista freudiano. Freud acreditava que o sofrimento de suas “histéricas” se dava por seu não ajustamento ao seu papel - no que a autora concorda. E acreditava que só haveria possibilidade de cura para seu sofrimento psicológico se este papel fosse aceito de bom-grado – no que discordamos eu, a autora e provavelmente todo o movimento feminista.

No primeiro capítulo, Kehl (engraçado, né? Parece apelido de “raquel”) trata de uma questão fundamental para a psicanálise, para a obra de Flaubert e para o feminismo: a construção do discurso. As mulheres são objeto de um discurso do feminino que não foi elaborado por elas. Falando em português claro, ninguém perguntou pra mim ou pra você o que é ser mulher. Você pode argumentar que, Iara, mas ninguém perguntou aos homens também. A diferença é que o homem é o “sujeito zero”, digamos assim. O cidadão básico, que não precisa de definição. Nem precisa ir muito longe na história: acho que todo mundo sabe que os redatores das revistas femininas do começo do século XX eram todos homens. O discurso que as moças liam sobre como deveriam se portar não era elaborado por mulheres mais velhas e supostamente experientes, mas por eles. E assim tem sido desde sempre: nosso lugar é aquele que nos foi reservado pelos outros. Uma das minha melhores amigas, psicóloga de formação, uma vez disse que eu era muito radical, que nem tudo construído socialmente é ruim. E eu concordo: sou monogâmica e não acho isso ruim, só pra dar um exemplo banal. Ruim é quando querem te empurrar todo um modelo, composto por uma série de atributos, goela abaixo (ou cabeça adentro, como preferirem). Então, este é o primeiro ponto fundamental: não foi a mulher que inventou o que é ser mulher. A gente vive com isso, algumas melhor do que outras. E, bom, a matéria da psicanálise é a fala do paciente, né? O discurso faz parte do tratamento. Freud tinha um desafio imenso de tentar fazer falar aquelas que não tinham voz. E lógico, ao falar, revelaram coisas inéditas ao seu ouvinte.

Bom, mas vamos a Madame Bovary um pouco. Ela faz parte de uma geração pós Revolução Francesa, evento que trouxe uma grande mudança na expectativas dos homens burgueses, mas não de suas mulheres. Pra tentar ser curta grossa: até a Revolução, os filhos de sapateiro cresciam sabendo que seriam filhos sapateiros. Não havia mobilidade social. Logo, como esposa do sapateiro, a mulher era seu igual. Ok, não era e nem é até hoje, mas não vamos falar da dominação doméstica, foco no papel social de maneira mais ampla: ambos, marido e mulher, já tinham suas cartas marcadas, seu lugar estabelecido. A Revolução agitou as coisas e trouxe a expectativa e a possibilidade de novos empreendimentos. Lógico, a mobilidade social ainda hoje é muito restrita. Mas somos uma nação que elegeu um retirante torneiro mecânico presidente, então, né, a possibilidade existe, e já existia (em menor medida, claro) no século XIX. Mas, para as mulheres burguesas desta época, as cartas continuaram sendo marcadas. Com um agravante: antes, se a moça se casava com o médico do vilarejo, sabia que seria, para sempre, a esposa do médico do vilarejo, ok. Depois da Revolução, passou a ser a esposa do médico do vilarejo que até poderia ter se destacado, mas não o fez por mediocridade. Havia uma expectativa a ser frustrada. A mulher só chegava até onde a levasse seu marido, e nunca poderia ser mais inteligente que ele. Assim, fosse minimamente mais “arejada” e imaginativa, como Emma Bovary, estaria condenada, para sempre, à opacidade social de seu companheiro.

E, bom, o que faz Emma para preencher seu tempo? Lê romances. Que não só não a ajudam a sublimar sua energia subempregada, como também alimentam suas fantasias. Emma Bovary é Dom Quixote de saias: de tanto ler, passou a se fantasiar como protagonista de suas próprias histórias. O problema é que o protagonismo lhe era, justamente, negado. Não havia essa possibilidade para ela, em nenhuma circunstância. A Kehl, em seu livro, menciona algumas mulheres que se destacaram no século XIX justamente pela literatura. Jane Austen é a mais famosa que eu me lembro agora. Uma das poucas mulheres que podiam se sustentar com seu trabalho intelectual, e uma ironia que este trabalho seja, justamente, seu discurso. Curioso este duplo papel da literatura, alienando e resgatando da alienação por vezes. Nossa autora menciona ainda outros casos bem sucedidos de mulheres que, compreendendo bem o papel do casamento em suas vidas, conseguiram se unir a maridos que incentivavam seu desenvolvimento intelectual. Mas Emma Bovary não tem potencial para ser Jane Austen. E seu sofrimento é porque, justamente, não havia a menor possibilidade de contar com seu marido para essa transcendência almejada. Fosse uma mulher pobre, operária, talvez vivesse com alguma dignidade como criada numa família rica, sem necessariamente sujeitar-se a um marido. Mas Emma é pequeno-burguesa, inteligente, sem contudo chegar a ser brilhante. Fosse no século XXI, viraria assistente administrativa em multinacional, pra ganhar seu pão com dignidade e sem maiores intempéries enquanto sonhava em dominar o mundo (oi? o/). Sendo o século XIX, o que lhe restou foi procurar amantes e tentar, por meio deles, se realizar. No romance ficam claros seus diferentes papéis nas relações em que se envolveu. Se não é bem-sucedida, é mais por culpa da dificuldade da empreitada do que por sua capacidade de empreendê-la. Mas, segundo Kehl, se podemos determinar o poder de decidir seu próprio destino como medida de sucesso, talvez Emma Bovary tenha sido sim bem-sucedida de alguma forma.

Kehl afirma que não pode, como profissional, dar um diagnóstico de Emma Bovary assim, sem mais. Mas tudo nos leva a crer de que era uma histérica, segundo a definição freudiana, e sua condição a infligia grande sofrimento. Como eu disse acima, para Freud, o caminho para a cura seria a resignação sincera. Kehl acredita que não. Freud, como homem do seu tempo, não foi capaz de visualizar uma mudança na sociedade que permitisse às mulheres não sofrerem pela inveja do falo. E aí eu aprendi um coisa que não sabia (acho que até sabia, mas não lembrava, ou não tinha ficado tão claro): que o falo não é o pênis. Mulher não tem inveja do pênis, tem inveja do falo, tem inveja do poder de ação e de discurso que aqueles dotados de pênis têm na sociedade patriarcal. Porque, né? Eu acha viagem mesmo essa coisa do pênis, que só me faz falta mesmo em banheiro de rodoviária e boteco copo-sujo. Lógico que a castração só é simbólica. Serei eu a única lesada? Tenho a impressão de que a própria autora diz que o Freud confunde essas ideias às vezes - mas pode ser viagem da pessoa que escreve sobre um livro 2 meses depois de ter terminado a leitura e sem ter feito nenhuma anotação (é, nenhuma vocação acadêmica, fato). Sim, um falo, para algumas mulheres, poderia ser um filho, a realização através da nova geração. Neste contexto, faz sentido o desinteresse de Emma pela filha, já que uma mulher não poderia transcender por ela, seria só mais uma a ser esposa de alguém. A sedução também é poder, claro. Freud acreditava que suas pacientes poderiam ficar livres de sofrimento se entendessem que sua transcendência estava nesse binômio sedução-maternidade. Binômio que a gente sabe que é super atual, é o que nos vendem como “combo mulher nota 10”. E a autora não o nega nem o desqualifica. Mas, né? É muito pouco. São só dois caminhos, tem mulheres que não querem nada disso, tem mulheres que querem isso e muito mais. Tem mulher que quer ser até Presidente da República, olhem só a audácia.

Pronto, pari o post. Desculpem se ficou confuso. Recomendo a leitura do livro, porque é muito denso, mas didático e esclarecedor. A Editora é a Imago.

PS: Acabo de me dar conta de que este blog completou 1 ano no dia 5, bem no meio da depressão pós segudo turno. Nem lembrei...

Update, no dia seguinte: vocês também tem vergonha de seus textos publicados com sono? Corrigi uma porção de coisas já, mas ainda tá confuso. Desculpaê, pessoal...

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Mudando de assunto...

Eu tô devendo um post sobre o livro da Maria Rita Kehl que eu falei que ia fazer, até porque será sobre uma obra em que ela analisa Madame Bovary, a Rita leu faz pouco e, bom, o timing tá passando (droga!). Mas tô meio de saco cheio de assunto super sério (eleições? deu por enquanto). Daí me deu vontade de escrever sobre algo diferente. Algo sério mas não no gênero épico, no lírico.
Tenho essa amiga que está num relacionamento bem instável. Aliás, não só o relacionamento, a vida dela está muito instável e este relacionamento começado no meio da crise só reflete isso. E ela diz que gosta do cara, mas os dois não conseguem se entender. Na sua versão, não dá pra terminar porque o namoro “é a única coisa boa” na vida dela no momento. E não adianta eu argumentar que “olha, mas um relacionamento ruim não é uma coisa boa...”. Claro, cada um pensa de um jeito. Tem gente que não consegue ficar sozinha, e pode ser que seja o caso dela. Eu já estive sozinha por longos períodos e já estive em relacionamentos ruins e posso dizer que hoje eu não troco a primeira situação pela segunda. Mas sou espertinha o suficiente pra dizer que esta sou EU e isto é HOJE. Não posso garantir que sempre vou pensar assim. Mas que eu acho um desperdício uma pessoa tão jovem se apegar a algo que não a está fazendo feliz, isso eu acho.
O problema principal do casal em questão é o ciúme. Os dois sentem um ciúme absurdo um do outro. Não é caso de polícia, felizmente, mas é caso de tensão constante. E você diz: “mas Iara, sua tolinha, tem gente que acha que isso apimenta a relação”. Pode ser, mas eu acho que uma coisa é aquela briguinha boba, aquele charminho, que termina em fazer as pazes na cama. Outra é ficar o tempo todo se perguntando o que o outro está fazendo, sofrendo, fantasiando e levando a questão para guerra semana-sim-e-outra-também. Sabe gente que vai fuçar no celular alheio procurando algo pra se aborrecer? Nesse naipe.
Já falei pra ela que é bobagem. Que não funciona assim. O amor só é tão bacana porque o outro é livre. Tem que cativar, não prender. Mas ela disse que não consegue ser assim, que tem muito medo de “ser feita de trouxa”. E, né? Mandei a real pra ela. Garantia até a próxima Copa, só na televisão nova. Amor não dá garantia nenhuma. “Ser feita de trouxa”, que pode significar coisas muito diferentes pra pessoas diferentes, é um risco inerente ao sentimento. Enquanto eu escrevo isso, marido está na faculdade. Quer dizer, deve estar. Mas pode estar com outra, dizendo “sabe como é, minha mulher é frígida, nem rola nada entre a gente, etc”. Confio muito nele, nos seus sentimentos, e no seu amor e respeito por mim, mas já vivi o suficiente pra saber que as pessoas são humanas, com tudo de bom e de ruim que essa humanidade implica. Todas as pessoas que amamos têm potencial pra nos machucar.. TODAS. E olha só, também temos esse potencial e podemos machucar os outros, ainda que involuntariamente. As opção são: confiar, não pensar no assunto e extrair o máximo de felicidade da vida, ou se fechar, travar e viver angustiada por não ter o controle de tudo. Eu escolhi a primeira.

terça-feira, 5 de outubro de 2010

Elaborando um pouco a indignação desta manhã

De manhã eu estava com uma enxaqueca daquelas terríveis. Daí, abri o Uol, vi o link, achei que nunca mais fosse ficar em bem na vida. Mas a Neosaldina* ajuda gente a concatenar as ideias.

Enfim, eu tava satisfeita com a maneira com que a Dilma tava levando as coisas antes dos boatos. Não dá pra dizer que é super a favor, tem que jogar no colo da saúde pública. Acho que dizer assim fica claro. E acho que faltou orientação da campanha, de dizer que é o congresso que decide, que presidente sozinha não faz nada, que ela precisa repetir isso. Sim, no meu mundo ideal ela poderia ser mais enfática, claro, mas no meu mundo ideal aborto nunca teria sido criminalizado. Então achava que isso era o suficiente pra não desagradar ninguém. E daí entrava o pessoal religioso, Crivela, Benedita (e agora no segundo turno, o Chalita), que já que estão lá, tem que prestar pra alguma coisa. Pelo menos pra usar sua comunicação com este público pra dizer que ela não é o bicho-papão.

Mas aí vai o bosta do André Vargas falar aquela bobagem no twitter. Que abortista é o Serra por conta da pílula do dia seguinte. O que além de ser uma campanha de tão baixo nível quanto o que a gente critica, traz a pauta uma questão já conquistada. Tem como ser mais revoltante? Ah, tem. Lembra que eu disse ontem que tem gente do nosso lado com quem eu não confraternizaria para nada? Paulo Henrique Amorim, por exemplo. Olha só, o Serra, como Ministro da Saúde, assinou uma política pública pra fazer com que o SUS atenda as mulheres que tem direito a interromper a gestação legalmente, de acordo com a nossa legislação. Porque apesar de terem este direito desde 1940, não conseguiam exercê-lo pelo SUS. Quer dizer, bola dentro. O que um Ministro da Saúde sério deve fazer. Apesar de chamar quem aborta de “carniceiro”, o cara deu a cara a tapa pra garantir um direito adquirido. Algo a ser comemorado, pois. Daí o que PHA faz? Sugere transformar em spam pro outro lado. Tipo, “abortista é ele, não somos nós”. Se isso não é desonestidade das mais baixas e desrespeito com uma bandeira tão cara ao feminismo, eu não sei o que é.

Sabe o que me incomoda demais? É que Luiz Buassuma está ado-ran-do o rumo dessa prosa. Luiz Buassuma é um dos defensores daquela aberração do Estatuto no Nascituro. O cara foi expulso do PT por suas posições, e imagino que as feministas do partido devem ter feito pressões neste sentido. E sabe que partido o acolheu de braços abertos? Surprise, suprise: o PV da Marina. Daí sai uma notícia dizendo que o PT está disposto a pôr as feministas de lado. E, olhem só, o PT tá precisando de alguns votos que, no 1º turno, foram pra Marina. E a Dilma aparece no JN dizendo que é super pró-vida, sem ninguém ter nem perguntado. Você pode achar que eu estou exagerando, mas lembre-se que o Estatuto do Nascituro a redação do Estatuto foi aprovada pela Comissão de Seguridade e Família da Câmara, o que já o torna mais do que um devaneio. Eu quero crer que daqui a pouco alguém engaveta isso, até porque eu não acho mesmo que a sociedade deseja esse retrocesso. Além disso o Bassuma, o Miguel Martini e a Solange Almeida, que são os 3 cabeças da coisa, não se reelegeram - nem tudo na vida são más notícias. Mas alguém vem aqui por favor dizer que eu estou mucholoka de ter relacionado tudo isso, que uma coisa não tem nada a ver com a outra.

* isto não é um publieditorial

Do desabafo

O desabafo se fez urgente, por conta disso aqui. O recado tá dado: ou a gente tem uma mulher lá, ou a gente discute aborto. Os dois juntos não pode. Impressionante com a pauta feminista é sempre a que vai ser sacrificada. SEMPRE. Notem que tirar a discriminalização do aborto de pauta não vai garantir a eleição, mas pode enterrar a discussão por muito tempo. Tempo que as mulheres que estão morrendo de hemorragia em clínicas clandestinas não têm.

Eu tava animada, juro. Eu tava me organizando pra escrever um post bacana convocando os eleitores da Marina a passarem para o nosso lado. Mas essa notícia acabou com o meu dia. Não estranhem se eu der uma sumida. Eu tenho um emprego, um marido, uma pós pra cursar, família, amigos, e eu preciso estar bem pra tudo isso idependentemente do resultado das urnas dia 31, porque a minha vida continua. E por isso, pra manter a minha sanidade, talvez eu tenha que me afastar um pouco da discussão. Porque eu entrei na internet, li isso e me deu uma imensa vontade de chorar, mas minha mesa tá cheia de trabalho, e é isso que eu tenho que fazer agora.

Update: Ah, sim. E o horrível. O imbecil do secretário de comunicação dizer que o demônio é o Serra, que implantou a pílula do dia seguinte. E parece que nem foi. Mas, se fosse, é pra dar um beijo na careca dele, porque é uma tremenda conquista.

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

E depois do susto...

Olha só, eu pensei muito, li muito e passado o susto e o medo reginaduartísco de não rolar no final das contas, tô achando é bom que a eleição foi pro 2º turno. Porque a gente aprende um monte com isso. E a principal lição, pra quem não tinha se ligado, é que arrogância e presunção não são exclusividade da direita. Que como eu coloquei aqui esse “nós x eles”, essa trincheira, é péssima pra democracia. Porque a primeira coisa que muita gente fez foi o quê? Desqualificar o voto na Marina. Olha só, eu não estou dizendo que questionar ou tentar entender é desqualificar, pelo contrário. Acho que é este questionamento que é importante. O que não pode é, como eu vi muita gente fazendo, dizer que é um voto despolitizado, de mauricinho. Sabe aquele lance de dizer que petista é ignorante e tal? Mesmíssima coisa, com o sinal invertido. É interessante porque ao mesmo tempo que tem amigos bacanas mandando e-mails babacas, a gente se dá conta de que tem gente na esquerda que não dá vontade nem de apertar a mão, quanto mais confraternizar em algum sentido. Mas isso é maturidade, perceber que o mundo diverso, há gente bacana e babaca em todos os lados e olha só, a gente tem um país a construir e precisa da ajuda de todo mundo.
Mas o voto na Marina é o caso aqui. Sem nenhuma ofensa, é razoável dizer que ele é muito diverso. Tem gente que acreditou em spam que a Dilma disse que nem Jesus a derrotaria, tem gente anti-PT mas sem especial simpatia pelo PSDB, e tem gente que simplesmente não quer endossar o governo assim, de saída, porque ele tem uma série de defeitos. E, oi? Não reconhecer que há problemas é sério. Há muitos. Ainda acho que há mais acertos, por isso votei na Dilma no 1º turno. Mas eu mesma sou da turma de mais de 6 milhões de eleitores que não votou no Lula em 2006 no 1º turno. Votei na Heloísa. E eu sei que agora dá mais medo porque a Dilma não é o Lula e o Serra não é o Alckmin. Só que 2010 também não é 2006. E acho que todo mundo concorda que o 2º mandato foi muito melhor que o 1º, que os resultados foram mais visíveis mesmo.
Por outro lado, a urgência dessa autocrítica. Que tem que ser feita pra ontem, e se a gente ganhasse no 1º turno talvez não viesse. Em time que se ganha não se mexe, né? Pois é pra continuar ganhando o governo vai ter que ouvir mais os porquês de quem não está com ele. E isso é excelente pro Brasil. Olha só, aqui em São Paulo o governo estadual conta com o voto anti-PT e não faz autocrítica nunca. Fica aí, fazendo o mínimo do mínimo do mínimo no estado mais rico do país e já tá indo pra 20 anos no poder. Lei do menor esforço, saca? E você agora vai falar que o PT não é o PSDB. Mas não é por isso que eu quero o PT no poder por anos a fio achando que está abafando. Colocando um cara sem experiência e agressor de mulheres e achando que vai levar o Senado com isso, que não vai se queimar. Que vai apoiar Roseana Sarney e vai ficar tudo belezinha (fosse eu maranhense, acho que votava na Marina também). Menos, né, gente?

Enfim. Muito a ser discutido, muito a batalhar. Mas comemoremos a democracia, comemoremos Marina, comemoremos a possibilidade de abrir nova discussões.

PS: Continuo com medo da baixaria, claro. Mas se o PSDB aprendeu alguma coisa nessa campanha foi que o eleitor não curte baixaria, não. Tanto que ele não ganhou nada com ela. E se apelar muito, só tende a se queimar mais. Mas, eu posso estar enganada. E o meu medo mora aí, claro.

domingo, 3 de outubro de 2010

Ansiedade

Tá difícil. Eu achei que rolaria hoje mesmo (marido ainda acha que dá, talvez), mas tá muito difícil. A primeira parcial, que dava Dilma 41 e Serra 37 quase me matou do coração. Tô tremendo até agora, sério. Em nenhuma pesquisa o careca aparecia tão bem votado. Faltam pouco menos de 20% enquanto eu escrevo isso. Eu quero muito voltar aqui e dar um update de que, ufa, deu, mas acho muito, muito difícil. E mil coisas. Muito medo do saco de baixarias que se seguirá, porque agora que os caras viram que podem ter chances (acho que nos últimos dias eles estavam bem desanimados), vão apelar geral, porque nem a dignidade eles tem a perder.
E a Marina, 20% até agora. Grande vitória pra ela, por estar disputando com a candidata do governo e o figurão da oposição. E a grande dúvida: o que será desses votos? Eu não consigo ver a Marina apoiando o Serra, mas o partido dela é outra coisa, né? E tem muito voto nela que é conservador.
Princípio de pânico de não haver continuidade do governo Lula. Mas acho que dá, né? Tem que dar, pelamor.

Não sei como vou dormir esta noite. Muita adrenalina. Mas se conseguisse, queria acordar só no dia 31.

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Sobre o voto pra senador em São Paulo

Sumi, eu sei. Se mais alguém além da fofa da Luci, que até cobrou, sentiu falta, desculpaê. Assunto não falta, nunca. Aliás, eu não sei se alguma vez eu contei aqui mas eu sou uma pessoa prolixa e que fala pelos cotovelos. E que tem que cortar às vezes parágrafos inteiros pros posts ficarem razoáveis. Mas além de tagarela eu sou também preguiçosa e instável. Então de vez em quando perco o tesão de escrever por uns dias.
Como eu continuo com preguiça, resolvi fazer um post pra linkar um debate que eu vi primeiro no post do Idelber. Depois eu fui lá na Mary W, depois na Camila e na Kellen (cujos blogs não conhecia). E o causo é que aqui em São Paulo a gente tem um problema pra escolher o 2º voto pra senador. O primeiro vai pra Marta. Mas, se for seguir a coligação, o 2º voto seria do Netinho, que se filiou ao PC do B. Netinho, pra quem não se lembra, é um pagodeiro que depois foi fazer programa de auditório. Admito que eu conheço pouco de sua trajetória, e admito até que tenho muita simpatia por ser uma liderança vinda de periferia. Só que ele é um agressor de mulheres reincidente. Daí, complica.
E bom, a discussão nestes blogs é excelente sobre os porquês de votar ou não no cara. E há coisas bem pragmáticas, que eu acho que são muito válidas, até. Respeito muito os argumentos, mas pra mim, não rola. E quero deixar claro que isso não é um dogma. Não estou dizendo que nunca, jamais, em tempo algum, votaria num cara que algum dia na vida agrediu um mulher. Não estou dizendo que o arrependimento dele não é válido e ele deve queimar no fogo do inferno. Longe de mim, que sou humano e tenho aí a minha listinha das coisas das quais eu não me orgulho de ter feito na vida. O caso é que o cara não virou um tapa numa namorada uma-vez-na-vida-durante-um-discussão-acalorada-lá-pelos-idos-de-93. Fosse essa história e, depois disso, ele arrependido, tivesse uma série de coisas muito bacanas pra colocar no seu cv, é lógico que eu olhava as coisas de outra forma. Mas o cara bateu na mulher em 2005. Tipo, anteontem. Daí se arrependeu, levou a Maria da Penha no programa dele, fez mea culpa e tal. E não tem aí uma história política consistente além de seu interesse (que eu considero muito legítimo, aliás) pela juventude da periferia.
Mas, bom, tem todo o argumento anti- Romeu Tuma. Que é mais do que válido, ô se é. Bater em mulher é horroroso, mas ser pró violência policial institucionalizada é pior. O potencial de danos à sociedade de um cara como o Tuma é incomparavelmente maior do que o do Netinho, claro. Mas o que eu estou dizendo é que eu, Iara, não consigo ser pragmática assim, de votar simplesmente porque é menos pior. E eu sou super pragmática, pra muita coisa. Meu voto na Dilma é muito mais pragmático do que ideológico, acreditem.
O que eu quero dizer, e tenho muita tranquilidade nisso, é que eu não tenho nenhum compromisso a não ser com a minha cidadania. Daí que, por mais que eu entenda que o Netinho representa um projeto político para o país que eu endosso, eu não me conformo do PC do B não ter quadros melhores. Tipo, talvez tenha, mas esse quadros não teriam tanto apelo popular, né? Beleza, eu entendo a lógica da coisa, mas não conte comigo pra fazer parte disso. Muita chance do Netinho ser eleito e não acho que isso vai ser um mau negócio. Mas fico mais tranquila se meu voto, que me é tão caro, não endossá-lo.

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Adendo importante ao último post

Eu preciso sair pro trabalho e hoje prometi a mim mesma ficar menos tempo na internet, mas tem algo que eu preciso comentar a respeito do post anterior. É que eu falo isso sobre o conservadorismo da classe média paulistana, e fica parecendo que eu coloquei uma trincheira aí, um "nós x eles", o que me incomodou bastante. Ninguém reclamou, mas acho bom esclarecer: eu não acho que exista só uma caminho bom, só uma resposta válida, tipo messianismo. Eu não acho que todo mundo que lê, se informa e questiona vai votar na Dilma porque ela é a melhor e ponto. Não acho que o eleitor do Serra seja ignorante, apolitizado, voto de manada, reacinha. Eu tenho na verdade muita preguiça de gente de esquerda que pensa assim. Acho perfeitamente possível que duas pessoas inteligentes, bem informadas e, principalmente, bem intencionadas, tenham divergências sobre o que seria o melhor para o mundo, até porque estamos falando de planos que envolvem muitas variáveis. E nesse ponto eu volto atrás ao que respondi pra Amanda nos comentários: acho que até dá pra ser casado tendo visões politicas diferentes, e pode até ser um exercício interessante, mas isso depende de um respeito profundo à individualidade do outro, respeito quem nem todo mundo tem. Que talvez eu mesma não tenha: pelo menos no casamento, prefiro que as divergências sejam menores mesmo, o que não significa em absoluto que eu e marido façamos eco pra tudo, estamos bem longe disso.
O post anterior é principalmente pra criticar o discurso no sentido contrário, de que quem vota no PT é ignorante ou mal-intencionado, que se beneficia diretamente de alguma forma de corrupção. Crítica a quem, votando no Serra, acha que o eleitor do Lula é analfabeto assim como o próprio também seria. E sei que muita gente vota no Serra não pensa assim, claro. Muita gente em São Paulo, inclusive. Mas o discurso que eu, no meu meio, mais escuto, é o primeiro mesmo, infelizmente
Então, este adendo foi pra isso, pra dizer que eu respeito muito a divergência de pontos de vista. Que acredito quando uma pessoa me diz que tem argumentos bem fundamentados pra votar no Serrra, tal qual eu os tenho pra votar na Dilma. Tô aqui defendendo o meu lado, mas respeito tem que ser uma via de mão dupla, né? Sempre.

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Pontos fora da curva

Hoje aconteceu uma coisa engraçada no trabalho. Alguém veio me perguntar se eu achava que a Dilma ia ganhar no 1º turno. Assim, do nada. E eu respondi que provavelmente sim, mas que existem dois fatores cujos impactos as pesquisas não tinham condições de avaliar, cada um pendendo para um lado. Um é o fato da herança no número 13 que é muito forte como o número do Lula, mesmo entre quem ainda não sacou que a candidata é ela. Outra era a exigência de dois documentos para votar, uma novidade pouco divulgada. Daí alguém comentou com um tom meio alegrinho que “o povo ignorante que vota na Dilma e ganha bolsa família” não sabe disso. Mas todo mundo meio que mimimi e perguntaram o que eu achava. E eu disse que era suspeita porque não só ia votar nela, como já comprei minha passagem pra assistir à posse em Brasília. Ficaram com aquela cara de tacho de: “jura?”. Juro, respondi. Sou petista de pai e mãe. E alguém perguntou se eu gostava do PT ou dela e eu respondi que gosto de ambos. Silêncio. Todo mundo voltou a trabalhar, assunto encerrado.
No trabalho do marido é sabido que só ele e uma colega são eleitores do PT. E um dia um cara veio com discurso de que falam tanto que o país melhorou, mais ele ainda tem que pagar escola particular pros filhos. Marido explicou que, oi, o responsável pela escolas de Ensino Médio é o governo estadual, do partido que está há quase duas décadas no comando de São Paulo, justamente o partido do Serra que era, ele mesmo, governador até anteontem. E como marido não deixa barato, falou pro colega se informar melhor pra não passar vergonha na próxima – e de repente, quem sabe, votar no Mercadante dessa vez, se o que ele quer é mudança.

Esses casos são exemplo de uma coisa que é muito clara pra mim: as classes média e média alta paulistanas não estão acostumadas a alteridade. Não que o ser humano assim, no geral, não seja resistente à diferença. Mas é que o nível de renda e de escolaridade mais alto aqui não contribuem para visão mais ampla do mundo. Acham realmente que sua vida é o padrão, a norma, que o resto é ponto fora da curva. Daí o discurso só varia na hora de falar de futebol mesmo (e um dos colegas ainda brincou: “você é corintiana E petista?”). E a eleição do Lula, ao meu ver, trouxe mesmo esse ranço de que nós (porque se eu não compactuo com discurso, também não nego minha posição social) não somos maioria. Que há no país milhões de pessoas que não têm nossas referências, nossas prioridades, e têm direito à cidadania. E esta minoria então estranha muito quando encontra, eventualmente, alguém que não recebe Bolsa Família, fala línguas estrangeiras, frequenta restaurantes e usa perfume importado, trabalha duro, paga Imposto de Renda mas não faz coro com o discurso de lula-analfabeto-ignorante-petralha-vagabundo-etc-etc.

Em 2002 eu trabalhava naquela empresa super elitista e escrotinha. E foi o ano da eleição do Lula, então, toda uma experiência observar estes colegas. Tinha um cara que era reconhecidamente super alienado, até para os padrões de lá. Contavam que uma vez o levaram pra visitar varejo na periferia, parte de um trabalho de pesquisa de mercado, e ele ficou chocado. Em dado momento perguntou, se referindo à pobreza do bairro visitado: “nossa, mas o que é essa miséria toda?”. E alguém respondeu: “ué, isso é São Paulo, mané! achava que acabava em Moema?”. Pois então, esse cara tinha certeza de que o Lula ia “transformar o Brasil em Cuba”. Repito, em 2002, não em 89. E tinha um papo hilário do povo que não entendia como o Lula tinha aquele percentual de intenções de votos, se eles “não conheciam ninguém que ia votar nele”. Uma colega, engenheira, chegou a dizer que fizeram uma pesquisa no prédio dela e ninguém lá ia votar no cara. Alguém sabe me dizer se no curso de engenharia estuda-se alguma coisa de estatística? Porque no de Letras não, mas eu sei que um condomínio fechado em São Paulo, de um edifício com 3 vagas de garagem e nome provavelmente em inglês NÃO é um microcosmo representativo do país. Logo fica difícil fazer alguma projeção numérica confiável com essa amostragem tão pouco diversa, né?

Essa minha aversão à mentalidade tacanha à minha volta me trouxe um presente dos melhores: meu marido. Digamos que nosso primeiro encontro não foi exatamente um sucesso, e o moço não deixou uma impressão das melhores. Mas, em algum momento, ele fez um comentário elogioso à gestão da Marta Suplicy na prefeitura e pediu desculpas por tocar no assunto se isso de alguma forma me ofendia, mas o fato é que ele era “um mocinho de esquerda” (desse jeito, olha que fofo?). E eu sorri e respondi que, tudo bem, eu também era uma mocinha de esquerda. E, ao fazer o saldo daquela noite meio desastrada, pensando se eu dava uma chance ou não pra aquela história continuar, este comentário pesou, porque é meio difícil encontrar gente de esquerda nos ambientes que eu frequento, ainda mais depois de ter terminado a faculdade. Enfim, liguei pra ele, dei mais uma chance a nós dois, e ganhei, além de um marido, o meu interlocutor mais querido. Brincamos que, se um dia oficializarmos a união, vamos ter que chamar a Marta pra madrinha...

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

9 caminhos

A Aline fez este post seguindo o meme, e nos comentários disse que pensou em passá-lo pra mim. Ela disse que ficou em dúvida sobre que raio de 9 coisas. Eu também, na verdade. A solução que ela encontrou foi o post fofo sobre os bichos de estimação. A minha também vai ser monotemática, porque eu lembrei que já tinha pensado em fazer posts sobre as coisas que eu gosto ou com as quais já trabalhei. Eu já contei aqui que eu sou perdida e tal, mas nunca contei o quanto. Daí no final de semana alguém me disse que se não fosse geógrafa, teria que nascer de novo, e que tinha pena das pessoas que chegam à maturidade sem saber o que querem da vida (oi? prazer!). E eu tentei explicar que eu sou assim não porque o mundo me é indiferente, porque não tenho paixões, mas justamente porque me interesso por muitas coisas. Então pensei em contar aqui sobre as coisas que eu já pensei em estudar, os empregos que eu tive, os caminhos que eu avaliei. Periga vocês acharem quem tem algo de ficção porque, né, eu só tenho 30 anos. Mas eu juro que é tudo sério.

1. Técnica em edificações (futura arquiteta ou engenheira civil)
Quando eu tinha 14 anos meu pai ficou desempregado, e eu achei que seria uma boa mudar pra uma escola pública. Até então, a única escola técnica profissionalizante que eu tinha ouvido falar era o Senai. Mas me informei e conheci outras. Como eu ia muito bem em matemática naquela época, achava que seria engenheira. E como eu já não gostava de eletricidade naquela época, escolhi o curso que me parecia mais simpático. Cheguei a fazer estágio num escritório de arquitetura, desenhando plantas (com tinta nanquim e papel vegetal ainda, nada de computador) e divulgando os produtos de uma fábrica de metais sanitários (meus primeiros rendimentos, aos 17 anos). Alguns amigos daquela época seguiram carreira. Outros, como eu, terminaram o curso com uma única certeza: de que aquilo não era o que queriam da vida.

2. Recepcionista/ Secretária
Bom, eu não cheguei a terminar meu curso profissionalizante. Naquele tempo, cursando 3 dos 4 anos, a gente podia pegar o diploma de 2° grau (é, eu sei que hoje se chama Ensino Médio) e cair fora. Foi o que eu fiz, mas já tinha decidido trabalhar enquanto fazia cursinho e pensava na vida. Então fui procurar emprego de recepcionista bilíngue, pra fazer valer a grana investida em anos de aulas da Cultura Inglesa. Consegui. Trabalhava numa empresa que sublocava espaço para outras menores e fazia a administração da coisa, como se fosse um flat (aluguel + serviços) só que comercial, não residencial. Às vezes me sentia como caqueles chinezinhos que rolam os pratinhos nas varetas tentando equilibrar todos, manjam? Imagina ter 5 pessoas na espera do telefone e mais 3 paradas na sua frente? Depois de alguns meses fui promovida a assistente administrativa mal sabendo usar o Office. Todos os dias ficava até tarde tentando aprender, faltando às aulas do cursinho. E aprendi (e consegui passar no vestibular também). Na verdade é graças a essa trajetória que pago minhas contas até hoje, porque eu amadureci demais e me desenvolvi muito profissionalmente. Não vou colocar o meu CV aqui, mas o fato é que fui mudando pra empregos que pagavam melhor, em empresas mais bacanas. Cheguei a ser assistente de um alto executivo numa montadora. Ser secretária tem um lado sacal, que é o de ser babá de gente grande, mas tinha um lance que eu sempre curti, que era tratar com todo mundo, de todos os níveis hierárquicos da empresa. Apertar a mão do presidente e tomar um café com os boys comentando o último jogo do Corinthians era uma parte interessante.

3. Professora
Em dado momento, cheguei à conclusão de que era muito nova pra fazer carreira, que era uma bosta chegar à faculdade tão cansada e que eu não queria trabalhar neste universo corporativo escroto. Pedi demissão pra dar aulas. Eu já tinha tentado dar aulas de inglês antes de entrar na faculdade, mas o fato é que não era boa o suficiente. Já o Espanhol eu aprendia como carreira. Então passei um tempo dando aulas de Espanhol, Português para Estrangeiros, Redação e o que mais aparecesse (acho que cheguei a substituir uma professora de inglês uma vez – mas só uma). Os planos eram seguir carreira acadêmica e virar professora de Literatura. Parece que eu até fazia tudo direitinho e os alunos curtiam minhas aulas. Mas eu queria ficar um tempo fora e larguei tudo para passar um ano na França aprendendo mais um idioma. E na volta nem tava mais a fim de fazer isso.

4. Babá
O ano que passei na França me sustentei como jeune fille au pair, a moça que se instala na casa de uma família estrangeira e cuida da(s) criança(s) e de alguma tarefa doméstica (no meu caso, passar aspirador de pó na casa) em troca de abrigo, comida, uns trocados e intercâmbio cultural. É uma experiência que dificilmente tem meio termo – ou é muito bacana, ou é traumática. No meu caso foi bem tranquilo, tenho contato com a família até hoje. Chegaram a me receber por uns dias na casa deles ano passado quando estive em Paris a passeio. E foi uma tremenda lição de tolerância. Passei a ter um respeito tremendo por empregada que dorme na casa dos patrões. Imagina ouvir bronca do chefe morando na casa dele? Não é pra fracos, definitivamente.

5. Relações Internacionais
Agora começa o campo do que poderia ter sido. Cheguei a procurar um Mestrado sobre o tema na França, mas colocaram algum obstáculo em relação ao meu histórico que me fez perder o tesão. Voltando ao Brasil, me inscrevi numa pós que tinha como tema o desenvolvimento social da América Latina. Não abriram a turma por falta de interessados, nunca mais ofereceram o curso e eu fiquei bem chateada.

6. Métiers du Livre – ou Editora
Outra coisa que me interessa muito: todo o processo de edição e distribuição de livros. Também vi uma pós do assunto na França – e nessa só admitiam, pra meu infinito desgosto, gente que tinha cursado Comunicação Social ou Editoração. Quando voltei, fui procurar cursos aqui e descobri que em São Paulo o único lugar que oferece é a Universidade do Livro, ligada à Editora da Unesp. Não fui porque os planos mudaram de novo (oi?), mas recomendo, parece que a coisa é boa.

7. Gestora Ambiental
Cheguei a procurar uns cursos na área, porque produção limpa é uma coisa que muito me interessa (e agora escuto o Plínio de Arruda Sampaio me chamando de “ecocapitalista”). O interesse começou quando eu trabalhei, por longos 8 meses, numa indústria nacional. O Diretor Industrial me contratou porque se impressionou com meu CV, digamos, diversificado. Achou um luxo ter uma assistente que falava francês mas também tinha feito curso técnico – peão e lady ao mesmo tempo, segundo o ponto de vista dele. Daí ele me mandava nas reuniões de fábrica e eu viajava ouvindo o povo reclamar de máquina com defeito, achava tudo uma chatice. Eu odiava este emprego com todas as forças, mas queria muito gostar, e achei que a pós pudesse ser o caminho. Bom, cheguei à conclusão que produção mecânica está entre as coisas que eu não gosto. Depois de sair do emprego, continuei interessada por um tempo. Mas passou rápido.

8. Trabalhar com comida
Comida é uma das minha grandes paixões. Eu adoro comer, adoro ir a restaurantes, adoro cozinhar, adoro ler sobre o assunto, adoro pensar questões políticas ligadas à produção de alimentos, aos nossos hábitos, enfim. Acho que dá pano pra manga, rende teses, inspirador mesmo. O foda é que eu não sei se gosto dessas coisas profissionalmente falando. “Porra, Iara, mas você disse que é paixão!”. Veja bem: é e não é. Mas eu pesquisei uns cursos no Senac de administração de serviços de alimentação. Mas o mais legal mesmo, que quando sobrar tempo e dinheiro (ou seja, nunca) eu devo fazer, é um curso que seria como uma Sociologia da Alimentação. Sabe pensar a comida numa perspectiva histórico e cultural? Pirei. Mas, né? Sei lá. Quem sabe eu mude de ideia de novo...

9. Administração – privada e pública
Daí que hoje eu sou uma assistente administrativa. Sou responsável por uma série de tarefas, de muito práticas à essencialmente burocráticas, num escritório pequeno de uma multinacional finlandesa. Não tá uma maravilha e eu poderia ganhar mais como secretária bam-bam-bam, mas daí eu lembro que ia ter que ser babá de executivo de novo e me conformo de ganhar menos. Além de que secretária é uma criatura infeliz que depende da agenda do chefe pra tudo, do almoço às férias, muitas vezes. E secretária nunca vai a lugar algum – e eu já fui mandada pra Helsinki pra fazer um treinamento, o que não deixa de ser divertido. E, voltando à ocupação, eu gosto muito de resolver problemas práticos, fazer coisas acontecerem. Gosto mesmo. Na verdade, penso que eu queria trabalhar resolvendo problemas grandes, gerindo questões de emergência. Lembram quando caiu aquele avião da Gol na Amazônia? Uma tragédia, eu sei, mas só conseguia pensar na logística envolvendo as buscas. Mesma coisa com o socorro à vítimas de enchente – fico aqui mentalmente pensando que precisa de água, de remédios, mas também de um plantão jurídico pra tirar os documentos de quem perdeu tudo. Enfim. E o curso que eu faço hoje, a pós que eu finalmente escolhi e tô adorando, é de gestão pública e urbanismo. Então cada vez mais eu penso que eu vou ter é que considerar a possibilidade de meter a cara nos livros por um bom tempo e tentar um concurso público. Mas ainda não sei. Complicada, eu?

Nem mencionei que o meu primeiro vestibular foi pra Jornalismo, porque daí viravam 10. Acho até que vocês iam achar um pouco demais (ou não?). E bom, parece que a ideia é indicar 9 pessoas pra repassar o tema. Eu tenho medo de passar tarefas assim às pessoas, porque elas podem ficar constrangidas – embora eu tenha adorado a indicação da Aline. Então, façam o seguinte? Quem comenta aqui sempre tá convidada a me contar 9 coisas. Vou adorar saber mais sobre vocês.

terça-feira, 7 de setembro de 2010

65 anos de subversão

Amanhã é aniversário do meu pai. E eu, que sou a super-queridinha ainda não escrevi um post sobre ele. Meu pai é assim: o sujeito mais tranquilão do mundo, e o sujeito mais subversivo ao mesmo tempo. Não fuma, parou de beber há anos, nunca se drogou, mesmo com alimentação é um sujeito comedido – só não deixe uma goiabada e um bom queijo perto dele, porque, na volta, periga não encontrar nada. Minha mãe faz um sucesso danado, porque é muito mais expansiva, mas é possível não ir com a cara dela, porque ela pode parecer invasiva pra quem for muito reservado, por conta justamente de seu excesso de entusiasmo. Como meu pai é mais na dele, é mais difícil despertar reações intensas, para o bem ou para o mal. Costumo dizer que quem não vai com a cara dele tem algum problema, porque ele simpatiza sem invadir seu espaço, sabe? E é um sujeito super tolerante. Lembro da adolescência, ir em baladas com amigas, e a gente achar um carinha bonitinho, mas elas dizerem que “já imaginou apresentar para o pai”? Pois é, meu pai nunca foi esse pai de família padrão, cidadão de bem aos moldes do Professor Hariovaldo. Nunca aconteceu, mas tenho certeza que ele não se assustaria com um genro de dreads músico alternativo. Quando eu fiz a minha tatuagem, o único comentário foi que ele achava burrice pagar caro para se auto infligir dor. Tipo, ele não conseguia conseguir entender o sentido, mas não era um problema moral, nunca foi.
Mas tem mais. Várias situações em que eu constatei que tinha um pai diferente. A primeira vez que eu anunciei que ia à Parada Gay, ele ficou pensativo e disse que não gostava muito de aglomerações, mas achava que deveria ir também pra expressar apoio, afinal a manifestação era pró direitos civis, direitos que são os dele também, oras. E bom, eu sou a conservadora lá de casa, votando na Dilma. Meu pai vai votar no Plínio e meu irmão vai anulá-lo, porque é anarquista há anos. E lembro do meu pai contemporizando sobre o anarquismo do meu irmão. Dizia que meu irmão estava certo no fundo, que se o Estado só servia pra reprimir a população, garantindo a manutenção garantindo o status quo, há que rebelar-se, afinal (!!!). Não imaginem meu pai um sujeito de longas barbas, sandálias de couro e camisetas surradas. Meu pai tem horror a camisetas surradas. Não gosta que a gente use nem pra dormir. É um senhor sem ostentação, mas muito bem apresentável, não combina com este estereótipo do comunista-sujinho.
Tem mais, quando ele se aposentou, fez uma caminhada de 300km entre Águas da Prata e Aparecida do Norte, chamada “Caminho da Fé”, e promovida como uma espécie de Santiago de Compostela brasileira. Mas meu pai é ateu, foi pra curtir o visual, e o desafio. Ele foi educado em seminário, e teve momentos e reaproximação de Igreja. E quando ele se reaproximou, foi pra participar. Ele não conseguia só ir à missa aos domingos. Não tem meio termo pra ele: um dia participa da liturgia e faz a celebrações quando o padre não está, no outro conclui que não acredita em nada disso e é ateu. Quando ele se afastou, o pessoal da Igreja achou que ele tinha se desentendido com o padre. E foram lá em casa perguntar o que rolava. Abordavam minha mãe na Igreja e tal. E ele virava pra mim, super constrangido, me perguntava como ia fazer pra contar pras pessoas que “olha só, Deus não existe. Até tentei embarcar nessa com vocês, mas não rola...”.
Meu irmão usou cabelos compridos por anos. Dos 13 aos 22, mais ou menos. E as pessoas achavam que meu pai poderia se incomodar com aquilo. E nunca se incomodou, nunca achou aquilo importante. Quando meu irmão tinha uns 14, começou a fazer um curso técnico numa escola que, dizem, era financiada pela Opus Dei. E tava nas regras deles que todos os ingressos não poderiam ter cabelos longos. E todo mundo que entrava lá, cortava, e as famílias achavam bacana, porque era um bom pretexto. Só que meu irmão não queria cortar de jeito nenhum. E meu pai foi lá, com a Constituição nas mãos, defender meu irmão, dizer que eles não podiam fazer isso. Que lamentava por quem tinha sofrido a pressão, mas que era inconstitucional essa interferência na aparência das pessoas. Lógico que meu pai achava roubada o lance da Opus Dei, mas meu irmão teve que chegar a essa conclusão sozinho (e se hoje ele é anarquista, vocês podem concluir que sim, ele chegou).
Ah e tem outra ótima. Semestre passado meu pai concluiu o curso de Ciências Sociais. A quarta faculdade dele, mas ele achava que as outras (Filosofia no seminário, Administração e Contábeis numa particular bem ruinzinha) não tinha dado uma formação bacana, e queria ter essa experiência. E ele passou no vestibular com 60 anos. Os colegas mais novos do que eu, claro. Mas ele sempre teve um tremendo simancol, nunca tentou bancar o garotão, mas fazia um esforço sincero pra se integrar aos colegas sem estabelecer nenhuma espécie de hierarquia. Lembro de uma vez ele angustiado porque o grupo com o qual trabalhava tava meio devagar pra começar o trabalho, e ele não queria tomar a frente da coisa pra não parecer etarista. E durante a faculdade uma das minhas primas se casou no religioso. Irônico que só, meu pai não se segurou quando o cunhado entrou conduzindo a noiva ao altar, me cutucou e falou baixinho “lição de Antropologia: agora a gente vende a mulher pro outro clã”. Eu mereço?
Mas talvez a história mais marcante pra mim tenha sido sobre sua participação na militância. Eu sabia que meu pai tinha lecionado História quando era mais jovem, logo depois da faculdade de Filosofia. E muitos professores meus na escola diziam ter fugido da polícia durante a ditadura. Mas apesar de meu pai votar desde sempre no PT, quando pequena eu ainda tinha uma imagem dele como pacífico e careta, até. Um dia eu perguntei se ele tinha fugido, meio que tirando um barato. E ele contou que não fugiu porque não tinha conseguido, foi preso antes. Aos poucos eu fui sabendo dos detalhes, foi em 74, ele estava circulando um abaixo-assinado contra a carestia, ficou 4 meses preso, foi submetido à torturas, teve os tímpanos estourados (e portanto não suporta som alto não por ser careta, mas por uma espécie de sequela). Foi julgado e absolvido. Só recentemente fiquei sabendo que meu tios mais novos foram também presos e sofreram humilhações, como uma maneira de coagir meu pai. E ele delatou companheiros, porque não podia arriscar que machucassem seus irmãos (sua irmã, em especial - e vocês podem imaginar que tipo de ameaça fizeram). Meu pai estava sendo preparado para entrar na luta armada, mas depois do trauma da prisão, e principalmente da culpa pelo sofrimento dos irmãos, abandonou a militância. Mas é muito enfático em dizer que, sim, ia pegar em armas se fosse o caso, porque os tempos eram outros. E alguém acha que vai mudar meu voto me mandando e-mail que chama a Dilma de terrorista... Em 2004, quando o golpe completou 40 anos, vi o meu pai chorar pela 1ª vez na vida. Chorou 2 vezes na mesma semana, lembrando da tortura a que pessoas conhecidas foram submetidas.
Como o último parágrafo foi pesado, deixo uma coisa leve pro final. Porque meu pai é muito leve, apesar de tudo; ele não arrasta peso pela vida. Por conta de um erro, coisas da roça, de quando se registravam as crianças todos juntas depois de muitos anos, a certidão de nascimento do meu pai traz a data de 02 de setembro, e não 8, como comemoramos. E dia 3 liguei pra minha mãe pra tirar um barato, perguntar se meu pai sabia que podia pegar ônibus de graça. E ele já tinha ido lá, providenciar a carteirinha de gratuidade para idosos. É ou não é um subversivo fofo?

(Marido fez aniversário ontem. E não ganhou post exclusivo, pelo menos não ainda. Marido, fica com ciúme não, tá?).

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Quando a vítima vira ré – ou Badinter na prática

Então meu lado B é ler notícias sobre celebridades e subcelebridades de vez em quando. Eu tenho mais o que fazer e deveria gastar meu tempo em algo que preste, eu sei, mas entre um relatório do Excel e outro, as vezes a gente precisa ver coisas que não exijam reflexões profundas, nem comentários elaborados. Famosinhos tem esse efeito sobre mim, geralmente: descontraem por alguns minutinhos. Daí esvazio a cabeça um pouco e volto pra terminar aquele relatório chato que ninguém vai ler. Ó ,vida.
Mas então, sobre o Dado eu já comentei. E a gente sabe que a lógica machista diz que nenhuma mulher apanha sem motivo. Quer dizer, o motivo nunca é porque o agressor é violento, a vítima tem que ter alguma responsabilidade. No caso do Luana era fácil, porque ela não prima pela simpatia nem pela auto-repressão, mas e essa pobre moça que casou com ele no religioso, mãe de uma criança de colo? Como culpá-la? Eu tava esperando, e nem demorou.
Apesar de dar um entrevista pra Veja em que diz que “nunca bateu pra machucar” (oi?), publicaram por aí que as testemunhas contra o Dado foram coagidas a depor. Considerando meu horror a condenações prévias, tive meio segundo de dúvida se deveria ter feito um post chamando o cara de agressor. Meio segundo porque eu lembrei, em seguida, que ele já foi condenado por agressão. Quer dizer, pode não ter batido na atual, mas na anterior com certeza, o que isenta minha acusação de leviandade. E, claro, ele pode perfeitamente ter batido na esposa sem as empregadas terem visto.
Mas, enfim, tem a cereja do bolo, né? Aqui a gente fica sabendo que o marido agressor só estava preocupado com a alimentação do filho. Se você não tá afim de clicar lá, eu explico: as mesmas funcionárias que disseram que foram coagidas a depor contra o Dado afirmam que o motivo das brigas do casal era a alimentação da esposa, que está amamentando. Em tão poucas linhas a gente vê a teoria da Badinter se afirmar com “dicumforça”. Quer dizer, o cara não pode dizer que ele é opressor. Mas quem vai ser contra as necessidades de um bebê, minha gente! E, olha, eu não li os comentários, mas certeza de que tem gente endossando este discurso. Que “onde já se viu ficar se entupindo de refrigerante quando se tem um filho pra amamentar”. Pra completar, a testemunha das brigas diz que o zeloso pai cobrava da esposa sua obrigação de amamentar o bebê até os dois anos porque ela “não faz mais nada”.
Isso tudo tinha link na home globo.com. Globo, aliás, grande incentivadora da porradas educativas em mulheres mal comportadas. Quer dizer, notícia de massa, o tipo de coisa com potencial pra formar opinião mesmo. Então fica claro como o dia a condenação e o estigma de quem apanha, não de quem bate. Eu tô muito otimista com a eleição da Dilma, já comprei minha passagem pra Brasília, até. Acho que vai ser um momento importantíssimo para as mulheres deste país. Mas não me iludo: uma cultura machista como a nossa, com tanto respaldo midiático pra continuar reproduzindo certos modelos, não se muda da noite pro dia.

terça-feira, 31 de agosto de 2010

Centenário \o/ e inquietações políticas

Então, 100 anos de Corinthians. E eu nem sei porque me tornei corintiana. Meu pai é sãopaulino, mas nunca foi muito empolgado com futebol. Acho que não tem ninguém próximo que justifique meu afeto. Lembranças mais antigas me remetem ao Sócrates. Devo ter ouvido algum comentário elogioso à Democracia Corintiana quando eu era bem pequena, e ficou a simpatia. Que virou amor. Não é nem paixão, é amor mesmo, daqueles que ocupa um lugar certo mesmo sem queimar. E lógico, casar com um palmeirense louco por futebol, viver a coisa da rivalidade dentro de casa todo dia, tornou tudo mais apimentado. Mas é assim independentemente do marido. Eu sei: não tem estádio, não tem Libertadores, e hexa e blábláblá. Não me venham com argumentos racionais. Não é assim que o amor funciona. Eu não deixei de amar quando viramos lavanderia de dinheiro da máfia russa, nem quando caímos. Lamentei muito, mas continuei amando e continuei fiel. E posso reconhecer que deve ser luxo ter galeria de títulos ou um presidente professor da Unicamp. Mas meu coração tem dono.

***

Então vem o lance do estádio. A Mary W postou aqui. E eu acho que ela tem razão em se indignar. É o seguinte: pra quem ainda não sabe, parece que o Lula, notório corintiano, pediu “uma força” pra Odebrecht pra sair esse estádio. Pedir uma força pode não ser crime, mas não existe almoço grátis, e o Lula deve saber disso. Então, se meter numa dessas assim, com sua sucessão quase garantida, é no mínimo temerário. O pior é que eu acredito muito que tenha sido assim. Não tenho esses preconceitos burgueses contra o Lula, mas tenho lá meu pé atrás. Acho que ele é um fanfarrão, e essa é o tipo de fanfarronice que é a cara dele. Então, dei uma broxada geral. Não queria nem o Lula nem o Corinthians envolvidos com isso. Fiquei com dupla vergonha alheia. E chego no trabalho e minha chefe, conservadora e palmeirense, diz que vão chamar o tal estádio de “Luiz Inácio Lula da Silva”. Argumento pra dizer que ela tá falando bobagem? Não tenho. Se acharem aí, me emprestem, por favor. E eu posso até zoar com marido, dizer que eu sou corintiana como o Lula, e ele palmeirense como o Serra, dizer que minha companhia é melhor, mas não é assim que a banda toca. Como eu disse acima, futebol é paixão – e política, pra mim pelo menos, é razão. Uma razão bem dura, aliás.

Meu consolo é que eu acho a Dilma muito diferente disso. Não se parece em nada com ela esse tipo de coisa. Então eu realmente acho que ela pode ser melhor do que o Lula em muitos aspectos. Que a eleição dele foi importante historicamente e tal eu não tenho dúvida. Mas pra mim, deu. Muita popularidade, muito poder, não sei aonde isso leva. Tem gente que vai chiar, dizer que torce pra ele voltar em 2014, como já ouvi por aí. Eu não. O governo Lula não é só o Lula, a gente tem que lembrar disso. A gente não precisa dele no poder pra garantir nada de bom do que foi feito - e nossa democracia só vai estar madura quando isso estiver claro. Ele tem qualidades inegáveis, mas não quero esse super líder populista. Não quero um mito. Tá bom assim, já.

Daí eu lembrei que uns dias atrás eu falei por telefone com meu melhor amigo, que tá envolvido com o PSOL. E foi muito legal a conversa. Marido tinha aberto um vinho, mas ficou pacientemente me olhando e esperando a ligação terminar pra conversarmos, porque ele sabia que eu ia vir com boas observações. E como a gente sabe que tem a Reinaldos Azevedos e Mainardis por aí, trabalha em multinacional com coleguinhas reaças, fica achando que é de esquerda. Mas meu amigo veio, me deu um safanão e me mostrou que eu, na verdade, tô na centro-esquerda. E eu tinha perdido isso de vista mesmo, sabem? E na conversa com ele surgiu uma série de pontos importantes. Que as pessoas estão comprando TV de plasma, mas não têm atendimento médico decente. Que se gasta mais com comida, comprando supérfluos, mas as pessoas estão ficando obesas e subnutridas ao mesmo tempo. Isso porque a gente nem falou do saneamento, esse horror. Enfim, uma série de críticas que precisam ser feitas, que precisam ser ouvidas. Mas meu amigo faz de um ponto de vista marxista com o qual meu discurso já não se afina. Além disso, devo admitir que tenho imensa preguiça de um partido pequeno e já rachado. Se não conseguem se entender entre os próprios quadros, como esperam administrar esse país tão grande? Mas ainda assim, tendo a votar no PSOL no legislativo, porque ando com sede de oposição bem fundamentada. Acho indispensável pra democracia essa oposição tomar corpo pra ontem, viu? Se até o Serra tá tentando convencer a gente que não é oposição, é porque tem um discurso único aí que não é bacana. Longe de ser ameaçador porque a imprensa trata de malhar bastante o governo. Mas que a falta de críticas construtivas é um problema, isso é.

***

No mais: TIMÃO-Ê-Ô, TIMÃO-Ê-Ô! \o/

domingo, 29 de agosto de 2010

Natureza, essa sacana

Eu queria ter feito um monte de coisas na semana que passou. Queria ter rendido mais no trabalho, ter lido o meu livro que jaz empacado, queria ter feito pelo menos uns 2 posts. Queria. Mas fui atropelada por uma TPM horrorosa. Uma das piores da minha vida.

Eu não costumo sofrer muito com TPM. O normal são uns 2 ou 3 dias meio resmungona, uma barra de chocolate devorada sem dó em algum momento, um pouco de enxaqueca na véspera (nada que um analgésico não resolva), e um pouco de cólica no dia que a menstruação chega. Mas notem só: sofrer pouco já é um conjunto de sintomas desagradáveis. Eles não chegam a paralizar minha vida, só tornam as coisas mais lentas um pouco, essa é minha referência pra dizer que é leve. Há meses até em que as coisas são bem tranquilas, e eu só lembro que vou ficar menstruada por conta de um outro sintoma que eu não mencionei acima: gases. Daí que eu arroto (desculpem as mais sensíveis), penso "nossa, o que eu comi pra arrotar assim?", e lembro que vou ficar menstruada dali há dois dias.

Já este mês a coisa foi punk-hardcore. Achei que eu não chegaria empregada e casada até o final da semana. Pra manter o casamento, fiquei sem falar com o marido dois dias, porque eu estava irritada por uma coisa pequena, mas sabia que se eu o abordasse, ia superdimensionar e me arrepender depois. Então, eu tenho a vantagem de ter essa lucidez, pelo menos. Eu sei que não estou no meu estado normal. O que não significa conseguir reverter isso, em absoluto. E o trabalho? Já falei que eu não amo de paixão meu trabalho, mas ele é ok. Essa semana fiquei o tempo todo pensando "deu. deu muito. não aguento mais essa merda, vou fugir daqui agora, etc". Na quarta-feira foi o auge. Às 4 da tarde eu queria morrer. Não tô exagerando, eu realmente queria morrer pra parar de sofrer. E tenho uma amiga querida que sofre horrores com TPM. Todo mês fica mais de 10 dias bem mal. Toma até antidepressivo, uma coisa horrorosa. Vem a menstruação e ela melhora. Na quarta eu mandei um e-mail pra ela dizendo que ela merece ser canonizada, porque não sei se suportaria, todo mês, uma semana ou mais, me sentindo como estava na quarta-feira.

Passada a crise, fiquei pensando na carga de sofrimento que nos é imposta pela natureza. Porque isso não é social. O estresse pode até ser piorado pelo estilo de vida e tal. Mas quem não tem nada de TPM também fica dias ali, sangrando. E pra que isso nos serve? A nós mulheres, como indivíduos, nada. Serve à reprodução da espécie. Se eu não tiver filhos, nada disso terá me valido de nada. Daí a religião teve que inventar a Eva, pra justificar essa injustiça natural. Porque a religiao também serve pra isso, justificar o injustificável. E toda a mitologia que constroem sobre o nosso corpo. Tipo, o útero. Não tem outra função a não ser abrigar um bebê. Minha mãe teve de tirá-lo há alguns anos. E o médico preocupado que ela não ficasse ouvindo conversa de que "você vai sentir um vazio", "vai ficar fria", porque não tem absolutamente nada a ver. E ela já tinha dois filhos, não ia ter outros, e tirou, não faz falta alguma. Fora o momento da reprodução, o útero é como o apêndice, só serve pra te dar problema.

Conversei com o marido depois. Ele no começo ficou preocupado, depois bem sensibilizado. E é chato, porque eu agradeço a ele pela paciência, claro, mas me revolto porque não fui eu que exigi essa paciência dele. Não foi voluntário, em absoluto. Eu não escolhi negligenciá-lo a semana toda. Eu tava lá, sofrendo, querendo morrer.

Passou. Sexta a gente ficou discutindo sobre os medicamentos, a discussão do livro da Preciado. Porque eu parei de tomar pílula, um pouco pra desintoxicar o organismo de hormônios. E, sem ela, parece que tudo piora um pouco. Na adolescência, eu cheguei a desmaiar de tanta dor por conta das cólicas. Acreditem, eu sou uma mulher durona e resistente, pra eu desabar é porque a coisa tá muito feia. Fiz vários exames, nada de errado comigo. Dores horrorosas mesmo estando saudável. Minhas cólicas incapacitantes só melhoraram depois da pílula (hoje a dor é leve, mesmo sem tomar pílula, porque parece que a idade faz diferença nisso). Então eu acho que a gente pode criticar os excessos, mas os remédios são muito úteis. Ficar pregando essa coisa super naturalista é atraso. Eu não quero suportar a dor, quero é uma Neosaldina, porra!

E, bom, a diferença, né? Porque tem que ser levada em conta. Eu tô aí, fazendo um esforço pra entender mais sobre feminismo. E lembrei sobre o debate sobre se vale ou não a pena menstruar. De como eu fico dividida. Porque, por um lado, acho realmente assustador querer suprimir tudo o que parece desagradável. Tem o medo da intolerância: se a possibilidade de não menstruar se generaliza, temo uma menor tolerância ao sofrimento de quem, legitimamente, escolhe continuar menstruando. Por outro lado, que semana de merda eu tive. A natureza tá me devendo uma, onde eu cobro?