sábado, 1 de maio de 2010

A prática da tortura no Brasil

Quinta-feira teve um happy hour da empresa. Na saída, dois colegas meus voltavam de trem, mais ou menos 10 da noite, quando um grupo deu uma trombada em um deles no momento em que as portas do vagão estavam se fechando em uma das estações. Levaram sua carteira. Aí começa a saga policial da qual só não foi testemunha porque não fui ao happy hour, já que o trem é meu meio de transporte também.
Enfim, saíram com a carteira. Três pessoas: duas mulheres por volta de 25 anos e um homem de 30. Fechadas as portas, quando olharam para o vagão ao lado (alguns dos trens tem uma janelinha que permite a visualização do vagão contíguo) viram que uma das mulheres estava lá. Na estação seguinte, tentaram trocar de vagão, mas a mulher saiu e, em vez de ir em direção à saída da estação, foi até a ponta da plataforma. Importante esclarecer que meus dois colegas são educadíssimos e jamais abordariam uma pessoa simplesmente desconfiando de sua responsabilidade pelo furto, por mais suspeitas que fossem suas atitudes. Mas, enfim, dali a dois minutos um senhor estava se sentando para aguardar o trem e viu que a carteira de nosso colega estava lá, intacta. Nem o dinheiro tiveram tempo de levar. Entenderam que a mulher a havia descartado quando notou que estava sendo seguida, para não ser pega em flagrante.
Bom, foram comunicar os ocorridos ao agente da estação. Contaram lá que um grupo assim e assim, com tais características, estava furtando carteiras. Dali há pouco, passaram um rádio avisando que um suspeito tinha sido detido na estação seguinte. Foram todos pra lá.
Ouvi a história no café na empresa, tá? Então não entendi bem se o que se seguiu aconteceu ainda na estação, ou parte na estação e parte numa delegacia. O rapaz detido foi reconhecido pelos meus colegas, mas não tinha nenhum produto de furto com ele. Como em um furto não há coação e nem abordagem direta, fica uma palavra contra a outra. Ok para meus colegas. Eles só estavam interessados em alertar para o risco. Mas, por conta disso, tiveram que assistir à truculência policial.
O suspeito era colombiano. A polícia passou a humilhá-lo, dizendo que o fato dele vir “de uma país de merda dominado por terroristas e traficantes” não o dá direito de roubar carteiras no Brasil. Perguntados sobre o que aconteceriam com o rapaz detido, avisaram que “dariam um corretivo” antes de soltá-lo, porque não poderiam prendê-lo em flagrante. Para comprovar sua responsabilidade seria necessário abrir um processo, acessar os registros da câmera de segurança, enfim, algo bem mais demorado. A surra e mais rápida.
Meus colegas sabem que seria inútil pensar em procurar entidades de defesa dos Direitos Humanos para defender um estrangeiro de uma surra policial às 2 da manhã (é, a coisa toda foi longe...). Reforço, conheço os dois o suficiente pra saber que ninguém achou “bem feito” que o sujeito tenha apanhado. Não procuravam punição de culpados, só queriam resolver seu problema imediato (recuperar a carteira) e depois contribuir para segurança coletiva comunicando o risco às autoridades. Mas parece que, para a polícia, não é possível que não haja punição. E o enorme constrangimento de ser reconhecido como criminoso não é punição suficiente.
Fiz a ponte, inevitável, sobre a manutenção da anistia aos torturadores, julgada pelo STF essa semana. Sou filha de torturado, e estou muito chateada que nosso país tenha ido na contramão do restante da América Latina e tenha dicidido que, ok, se meu pai foi preso, apanhou, teve a casa revirada, viu seus irmãos mais novos serem presos e humilhados também por suas idéias políticas das quais não compartilhavam (é não bastou torturar o "subversivo", tinha que impor sofrimento à família toda), isso fez parte de um contexto histórico e deve ser perdoado e esquecido.
Abomino a tortura provavelmente sofrida por este estrangeiro batedor de carteira tanto quanto abomino o sofrimento do motoboy morto covardemente pela polícia de São Paulo mês passado e os sofrimentos físicos e psicológios impostos ao meu pai e aos meus tios 36 anos atrás. Como já comentei aqui, não vejo cidadania possível fora do Estado de Direito. Se há uma lei, não deveria ser aqueles que agem em nome do Estado os primeiros a fazê-la cumprir?

8 comentários:

  1. É uma lástima a corrupçao generalizada no Brasil. Quando eu tava na faculdade, tinha um policial militar lá e ele sempre gostava de esbravejar isso: que bandido tem de apanhar mesmo. Esse cara adorava se gabar que era um excelente PM. Um dia, a professora de filosofia o calou dizendo: Policial bom é pessoa burra.

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  2. Uma vez eu fui assaltada e na mesma hora passou uma viatura da polícia. Não deixei minhas amigas chamarem a viatura porque o assaltante era adolescente e sei muito bem o que ia acontecer. Claro que eu também não agi certo deixando o menino andar por aí com um celular roubado pra comprar drogas (ele estava aparentemente drogado). Mas é difícil. Claro que isso aqui não é uma generalização, mas é chato perceber que não dá pra confiar na polícia na correração dos infratores. E depois, mesmo que os polícias ajam corretamente, ainda há as cadeias totalmente inadequadas, etc. É complexo.

    taí uma outra coisa, pelo menos eu, não gosto e não respeito político que fala de forma orgulhosa que criou mais cadeias. Por quê escolas de qualidade ninguém quer criar?
    só que Cristovam Buarque, que infelizmente não vai se candidatar.

    ;**

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  3. A suposta fala do policial demonstra não só truculência e falta de preparo para o cargo, como também preconceito. Combinação lamentável. Quanto ao comentário da Melina, esse é ponto: não adianta construir presídios sem se preocupar a quantas anda nosso sistema educacional.

    Beijos Iara!

    Rita

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  4. aconteceu o mesmo com meu ex-cunhado. quebraram os vidros do carro dele, acharam os culpados e a policia perguntou se meu ex-cunhado queria que eles dessem uma surra nos caras. ele disse que nao, mas imagino que essa nao seja a resposta de muitos.

    nossa policia eh uma mistura de preconceito, despreparo, frustração e ignorância. quem confia na policia? quem vê um policial e se sente seguro? piada.

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  5. Isso já aconteceu cmgo, qdo eu tinha uns 10 anos, e um homem tentou passar a mão em mim, dentro de um cinema.
    Eu consegui fugir dele, ele foi preso, e pelo estado que chegou na delegacia, horas depois de mim, tomou uma surra absurda.
    O fato é que, meses depois, eu o encontrei trabalhando em um estacionamento de um hipermercado. Não preciso dizer que me senti desprotegida, com medo de que ele viesse a se vingar de mim, afinal, eu estava ali, sozinha e ele havia tomado uma surra por minha causa.
    Felizmente, ele ficou com mais medo de que eu fizesse um novo escandalo, e que dessa vez fosse ali, no trabalho dele. E se comportou direitinho.
    Fato é, que eu não relaxei um minuto, enquanto estive ali...
    E mtas vezes, é mto melhor ficarmos quietinho, para morrer velhinho!

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  6. Lembro que uma amiga disse, há uns 7 anos atrás, que certo dia, ao sairem ela e um amigo da faculdade, à noite, para a parada de ônibus, num bairro central do Recife, viram um casal que já estavam na parada sendo assaltados por um menor com arma de fogo. Desesperados eles correram em direção oposta (estavam a uma certa distância da parada ainda) e, entrando numa rua seguinte, encontraram policiais e denunciaram o assalto. Minutos depois ouviram tiros. Na manhã seguinte, a notícia nos jornais de que o menor estava morto. Ela disse que não tinha como se sentir mal, meio que "se eu não tivesse denunciado o assalto..." Mas quem não denunciaria?

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  7. Corrigindo: Ela disse que~não tinha como NÂO se sentir mal...

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  8. Ana Flávia,

    Eu tenho um certo receio de jogar a culpa nos policias, sabe? O fato é que eles são muito mal-preparados, e acreditam e "matar bandido" é o que se espera deles. Não os isento de responsabilidade, mas acho que o problema transcende a questão policial mesmo.

    Melina,

    É, é muito complicado essa escolha, entre denunciar ou não, principalmente pra quem não é movido por revanchismo. Até é importante construir mais cadeias, porque quem está preso não pode ficar amontoado que nem bicho, né? Mas não é essa a solução, que a gente sabe.

    Rita,

    Olha só, conseguiu uma brecha na agenda londrina pra dar um pulinho aqui, que legal! Pois é, acho que há um despreparo geral, em todas as esferas: do policial, na abordagem, do poder público, na identificação de prioridades.

    Luci,

    Que coisa essa do seu cunhado. Como assim a polícia perguntar o que ele quer que faça? Quer dizer, quem decide a punição é a vítima, não a Justiça? E seu cunhado dissesse que queria que cada policial desse uma abraço no cara? Saca o quanto é ridículo? Eu não tenho exatamente medo de policial. Mas sinto o peso da opressão do poder do Estado quando eles estão presentes, sempre.

    Carol,

    Nossa, esse caso é muito marcante do revanchismo, da guerra social que se cria com esse nós x eles. Quer dizer, a polícia te deixa numa situação vulnerável quando alimenta esse possível desejo de vingança, como fizeram.

    Márcia,

    Nossa, história horrorosa mesmo. Claro, pode ser que o menino tivesse atirado antes, a gente não tem com saber. Eu não quero aqui crucificar a polícia e dizer que ela SEMPRE está errada, porque lidando com um criminoso armado eles estão sujeitos a risco. E são seres humanos, tem direito temer por suas vidas. Mas essa mentalidade estabelecida, de que "bandido tem que tratar na bala", faz com que a gente leia a notícia já pensando que, provavelmente, o criminoso foi executado.

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