domingo, 14 de março de 2010

A nossa (falta) de noção de justiça

Taí uma coisa que me incomoda na sociedade brasileira até mais do que o machismo: essa igorância sobre a justiça, ou sobre o que deveria ser justiça, a que se propõe, etc. Sabe essa história de achar que Direitos Humanos são invenção de ONG's que tem pena de “bandido”? (a propósito, eu odeio a palavra “bandido”, acho “criminoso” um termo mais preciso, com menos julgamento moral, mas pode ser só impressão minha).

E eu tô pensando nisso agora por três motivos especificamente:

1) O destaque da mídia sobre o Arruda na cadeia. Pra mim, a condição do cara na cadeia, se tem mais ou menos mordomia, não deveria ser notícia. Qual é a preocupação de o Arruda tá numa masmorra ou se tem TV na cela? A não ser que a discussão seja, especificamente, sobre os privilégios que os poderosos tem na cadeia. Pra esse caso de corrupção só deveria interessar se o cara não está mais no poder, se a justiça está agindo, etc. Mas o cara tem que virar bode expiatório e sofrer, vira um vilão. E, putz, a que leva esse revanchismo? O esquema tem que ser investigado, o cargos cassados, etc. Mas o Arruda queimar no fogo do inferno não me interessa como cidadã. E se, legalmente, ele tiver direito a um habeas corpus, isso não significa necessariamente que no país reina a impunidade.

1b) Ok, eram três. Mas esse lance do habeas corpus merece um anexo. Porque ninguém entende que o cara responder o processo em liberdade é um direito constitucional. O problema é que a justiça é muito lenta, então, realmente, dá essa impressão de quem não está preso agora, não será preso nunca. Mas aí é um problema da lentidão da justiça, não do direito constitucional, poxa.

2) Daqui a alguns dias é o julgamento do casal Nardoni. E eu lembro que, quando o crime aconteceu, trabalhava num lugar onde as pessoas eram menos esclarecidas do que meus atuais colegas. E o papo era que advogado de “bandido” é tudo “bandido” também, porque imagina, defender quem faz uma barbaridade dessas. E daí eu tentei explicar que olha, julgamento justo é direito de todo mundo. Ok, tem que ter estômago, concordo. Mas não há julgamento justo sem direto à defesa. E garantir isso é o mínimo que se espera de um Estado que se pretende democrático. E, bom, as colegas de lá ficaram bem “mimimi” com meus argumentos, meio que engoliram a contragosto mesmo.

3) Marido leu uma matéria chamando o rapaz que provavelmente atirou no Glauco de “o assassino do cartunista”. Sim, deve ter sido o cara mesmo, né? Mas ele não foi julgado ainda. E nem foi pego em flagrante. Presunção de inocência é direito também. Em outra chamada “O Globo” fez certinho, chamou o cara de “o principal suspeito de”, o que faz mas sentido. Enquanto o cara sequer for ouvido, mesmo que haja testemunhas, a imprensa não deveria de maneira nenhuma, incriminá-lo assim. Não é responsável, e colabora para essse sentimento de “pega pra capar” que toma conta do cidadão médio nessas ocasiões.

Enfim, me incomoda essa percepção de que um grupo merece a civilização, e o outro barbárie. E não é possível isso. A Mary W fez um post (excelente, como sempre) sobre isso, falando sobre o Estatudo da Criança e do Adolescente, tão demonizado quando a imprensa noticia crimes cometidos por menores. Civilização é garantir o acesso à Justiça por todos os cidadãos, inclusive àqueles que se portaram de maneira pouco civilizada. Eu não tenho a menor piedade cristã por assassinos. Mas sou contra a pena de morte porque, na minha concepção de Estado, há que se admitir a falibilidade da Justiça. Simples assim. E tem gente que não entende que pena de morte não é linchamento nem execução sumária. Que em lugares que se pretendem minimamente civilizados, como os Estados Unidos, há um processo criminal, um julgamento, um advogado. E ainda assim, muitos erros, todos os dias. Se há problemas com a civilização, imaginem com a bárbarie?

É, eu sei. Eu não deveria perder meu tempo lendo os comentários das notícias do “O Globo”. Faz mal e a gente se obriga a escrever um post inteiro só pra desopilar...

UPDATE em 24 de março: Li que o advogado dos Nardoni foi agredido hoje na entrada do fórum. Puxa. Questão de civilidade respeitar o trabalho do cara. Ok, ele tá ganhando dinheiro pra defender assassinos, mas se não fosse ele ia ser outro. É direito deles. É parte do processo civilizatório. Fico passada que as pessoas não entendam.

13 comentários:

  1. OLá Iara. Concordo em termos com sua opinião.
    Mas, temos que concordar que, do jeito que nosso judiciário anda, a justiça acaba sendo feita mesmo pela opinião pública. Sempre tenho em mente que, uma pessoa dita suspeita, tem grandes e reais possibilidades de ser, efetivamente, a autora do fato.
    Acho que só quem teve um ente querido ceifado pode falar com real propriedade sobre o assunto. Respeito a Constituição Federal e as demais leis ordinárias e complementares de nosso país, mas, respeito ainda mais a opinião pública, que se faz presente através da mídia impressa e falada.
    Um abraço.

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  2. O que eu sinto eh que quando uma coisa como a assassinato da Isabela ocorre, o brasileiro na sua maioria nao entende o que eh viver em um Estado de Direito. Eles querem voltar ao Estado de Barbarie e sair linchando suspeito, autor confesso ou whatever que veem pela frente. Uma pena isso pois esconde que nao sabemos na maioria das vezes que soh o Estado tem o direito de punir e que a gente nao pode sair estrangulando o criminoso por ai pois isso eh regredir.

    bjs

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  3. Olha, eu teria que procurar. Mas a Mary W. (que sempre nos salva nessa hora) diz que quem perdeu familiar é quem MENOS pode opinar né? Porque justiça não é revanchismo. Eu sei, eu sei. Todo mundo acha que é. Mas NÃO É. Simples assim.

    Droga, agora vou ter que procurar esse post...

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  4. Achei...hahaha

    Só um adendo e depois eu abro aspas. Pra mim tá mais do que claro que não se deve LEGISLAR baseado em sentimentos. Tipo, alguém da minha família foi vítima então eu é que posso opinar, vou fazer abaixo assinado pra mudar a lei, pererê, caixinha de fósforo. Ela tá falando da sociologia, mas super se aplica ao Direito. Isso dito...

    "Porque é aula de introdução a sociologia.E eu tento emular toda a certeza que Auguste Comte tinha, a respeito do método. E disse pros alunos que você tem que se manter afastado do objeto, se quiser comprendê-lo. Se você foi estuprada, não tem condição de estudar estupro. E que é preciso objetividade. Que o contra ou a favor não existe por aqui. Não é uma ciência de opinião, é uma ciência de análise.

    [...]

    E nos lembrou da lei do bafômetro. Eu disse que era bem o caso. Você ignora totalmente os fatos para tentar fazer a imposição de um valor. E fiz uma pesquisa rápida entre os alunos. Perguntei quem era a favor de motoristas bêbados pelas ruas. E ninguém era. E então eu fechei dizendo. É isso aí. Que todo o equívoco vem do pulo que se dá. Do ser contra bêbados motorizados direto para a lei do bafômetro. E só Auguste Comte é capaz. De nos fazer ver que as coisas não tem ligação nenhuma. E pronto."


    O post inteiro tá aqui: http://beauvoriana2.zip.net/arch2009-02-01_2009-02-28.html#2009_02-19_14_52_42-127299368-0

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  5. Então Evelize, eu concordo com o que a Daniela disse no comentário dela. Não é à toa que a justiça proíbe que qualquer pesso que tenha afinidade com a vítima ou a família participe do processo. Porque não pode se assim. Se alguém fizer mal a alguém que eu amo, eu de repente vou querer matar essa pessoa. Nossa, sem dúvida. Mas não é de sentimentos que a gente tá falando, é de Estado de Direito. Nossos sentimentos podem ser bárbaros. Nosssa Justiça, não. E não concordo em absoluto com o que você disse sobre a mídia. Ela inventa cupados sim. Você lembra o caso da Escola Base? E da mão que supostamente teria dado cocaína pra filha na mamadeira e foi espancada na prisão (depois comprovou-se que não havia nenhum vestígio de cocaína no sangue da criança morta). A mídia pode acabar com a vida de gente decente que está no lugar errado na hora errada. Ela tem que ser muito responsável. E não é.


    Pois é Mari. Eu não tenho a menor simpatia pelo casal Nardoni. Nenhuma mesma. Quero mais é que fiquem longos anos na cadeia. Mas o Estado de Direito tem que ser maior que a revolta popular.

    Daniela, como eu respondi em cima, concordo muito com você. Não é revanchismo, não é personalista, não pode ser sentimental. Justiça é parte do processo civilizatório e é para todos. E se matam aí um coitado que não tem ninguém pra chorar por ele, o assassino é menos criminoso do que se matam lguém muito amado?

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  6. Daniela, eu tava escrevendo junto com o seu segundo post, não tinha visto. Fui lá na Mary W. Nossa, ela é tão fantástica às vezes, né? Pago pau mesmo. Mas é isso mesmo, quem passou por xyz não é neutro e objetivo para julgar xyz. A justiça tem que ser objetiva.

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  7. Olha, eu acho mesmo que não podemos julgar antes do julgamento. E que a mídia faz o que bem entende com as informações. Quem não lembra da Escola Modelo? Os diretores foram acusados de abuso sexual contra as crianças e não era verdade. Outro dia li um caso de uns adolescentes que foram acusados de homicidio por puro preconceito a RPG. Pois é, os indicios levavam a crer que eram eles mesmos que tinha matado uma menina e se agravou pq jogavam RPG. Veja só. Agora, não podemos negar que aqui no Brasil quem tem grana e/ou bons conhecimentos não é devidamente punido. E não é só falha da própria lei não, é da aplicação mesmo. Muita gente comprada e etc.

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  8. Não faz mal ler os comentários das notícias do Globo não.
    E não sei se isso serve de consolo, mas até a Veja eu leio. E só pra ficar com raiva depois...

    Sadismo?

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  9. Haline,

    Eu concordo com você. A justiça é falha e realmente pe comprada. Por isso que eu lamento essa ignorância. Porque se o povo conhecesse melhor como as coisas funcionam podiam concentrar a revolta no que é realmente está errado.

    Van,

    Pois é, tem que ler, né? A gente não pode fingir que o mundo começa e termina do jeito que acha acha que deveria ser...

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  10. To atrasada, eu sei, mas to lendo todos os posts....

    Aqui no RS foi bem famoso o caso de uma menina de um ano e meio que foi abusada sexualmente e morta, encontrada na pia batismal de uma igreja que agora eu não me lembro qual.... Um rapaz foi preso, ouvido e condenado. Agora, um tempo depois, o Tribunal entendeu que as provas do processo não eram suficientes pra condenar ele, que a confissão e outras provas foram forçadas pela polícia, que outros suspeitos sérios não foram investigados... enfim, absolveram o cara...

    Exemplo ilustrativo pra dizer que eu penso exatamente como tu: e se o cara já tivesse sido executado por uma pena de morte?!?!?!

    Lembro ainda que na época do julgamento, havia um super envolvimento emocional aqui no RS (como no caso dos Nardoni) e daí pergunto, quem teria, na posição de jurado, coragem de absolver o cara?!?! O que menos importa nesses casos é a justiça e a lei... a paixão move esses processos!

    Enfim..... resumindo: deveríamos prestar muito mais atenção às nossas leis do que ao nosso emocional e ao clamor público. As leis são perfeitas? NÃO!! Mas esquecê-las quando queremos e bem entendemos (ou seja, só quando nos convém e só para os outros)é o primeiro passo pra baderna instituída!

    Ufa!!!!

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  11. Atrasada que nada, quer assunto mais atual que este?

    E seja bem-vinda!

    Então, eu vi esse caso aí do Sul. O cara chegou a confessar, e tal. E as pessoas não entendem isso, que nem a confissão prova alguma coisa. Quer torturar pra obter confissão não é só cruel: é ineficiente.

    E como você falou: não pode ser emocional. Se alguém fizesse algo contra alguém que eu gosto, nossa, nem me fala. Mas é justamente por isso que a justiça não é feita disso. Tem que haver racionalidade, objetividade e civilidade no processo. Senão, não há justiça.

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  12. Mais outra atrasada também... achei o texto muito bom. Expressou exatamente a sensação que eu tenho sobre a forma como certos crimes e processos são noticiados. Acho que o clamor popular é válido, mas infelizmente ele acaba se concentrando em cima daquilo que não é o "X" da questão.

    Sobre o caso dos Nardoni, pra você ter uma idéia de como o tratamento da imprensa foi irresponsável: os outros filhos deles estão vivendo sob nomes falsos, por determinação da Justiça eles não podem ser visto em público com os avós para não serem identificados, tudo em nome da segurança deles. Quer dizer, daí já dá pra imaginar que porcaria está a vida dessas crianças.

    Pois bem, teve um noticiário desses que entregou de bandeja os novos nomes das crianças. Na lata mesmo, só faltou dar endereço e dizer a escola que frequentam. Eu não me espantaria se aparecesse algum maluco com idéias de lei de Talião querendo dar um corretivo numa dessas crianças pros pais passarem aperto...

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  13. Irmfried,

    Tão bom encontrar mais gente que discuta isso. Realmente, o caso dos Nardoni é exemplar nisso. Porque essas crianças não tem culpa e já estão pagando, sendo privadas da própria identidade. Eu também temo por elas, porque as pessoas são loucas mesmo. E como fica a vida delas, né? Ninguém tá interessado. Querem só o circo mesmo. Os Nardonis são os novos cristão atirados aos leões pra a diversão da turba.

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