terça-feira, 27 de outubro de 2009

Caso de polícia, problema de saúde pública e escolhas

Essa semana os sites da Globo tão superexplorando a história do rapaz viciado em crack que matou uma colega. O pai dele escreveu uma carta-desabafo, muito triste, sobre a situação do filho. Semana passada tinham lá um link para uma matéria de uma mãe resolvou trancafiar um filho viciado em crack em uma jaula. Pra completar, a capa da Veja, com a sutileza de pata-de-elefante habitual diz, sem rodeios: “quem cheira, mata”.

Eu conheço dois lados das drogas: tenho amigos com uma vida produtiva usando drogas habitualmente de maneira recreativa. Mas também tive uma pessoa bem próxima que se viciou. A família buscou ajuda num grupo de apoio chamado “Amor Exigente”, para co-dependentes, e são voluntários até hoje, muitos anos depois do furacão.

Realmente acho que tem muito, muito moralismo quando se fala de drogas ilícitas. Sim, o dinheiro do consumidor vai para nas mãos do traficante, mas o Estado queria o quê? Acho tão irreal reprimir uma relação comercial onde, supostamente, as duas partes saem ganhando. O discurso que diz “não compre porque o seu dinheiro alimenta o tráfico” não está direcionado aos dependentes. Estes, na verdade, tão pouco se lixando (depois volto a falar deles). O suposto receptor desta moral é o estudante que queima um baseado na FFLCH, ou o cara que cheira uma carreira numa festinha numa festinha eventualmente. Estes, volto a repetir, vão em busca de um ganho quando compram as drogas: o prazer imediato proporcionado por elas. Tal qual o cara que contrata a prostituta. Ou qualquer um de nós quando compra uma cerveja. Então, este é um crime onde não há vítimas. Quer dizer, eu sei que há, muitas. Mas a imensa maioria é vítima do negócio ilícito e lucrativo da venda das drogas, não do ato de vender drogas sozinho.

Nesse sábado eu saí com um cara que eu conheço desde o colégio. Temos um amigo em comum, que estava junto. Programinha tranqüilo: museu, café, boteco depois. Pois bem, esse carinha se auto-define junkie. E eu sei que ele já tinha esse perfil desde a escola (há bons anos atrás). Não sei exatamente o que significa essa definição pra ele, mas tenho idéia, pelas conversas: bastante álcool, bastante maconha, cocaína com alguma frequencia. Talvez otras cositas más. O fato que ele é um cara produtivo: tradutor uma área especializada e de extrema responsabilidade, além de professor de inglês e de português para estrangeiros. E passa natais pacificamente com a família, com direito a “Amigo Secreto” com os primos e tudo mais. Eu o conheço só superficialmente, mas jamais diria que ele é antissocial. Como eu estudei Letras na USP, desnecessário dizer aqui que muitos dos meus amigos eram usuários mais ou menos eventuais de maconha. Alguns ainda são. E todo mundo é trabalhador, naquele sentido operário mesmo, de acordar cedo, estudar, batalhar sua vida. Tem gente até que formou família já. Por tudo isso, não posso aceitar o discurso simplista que diz que todo usuário de drogas ilícitas tem um problema social.

Por outro lado, tem esse pessoal que me traz os problemas compartilhados no grupo de apoio (eles podem me contar as histórias, contanto que não revelem nomes). Histórias muito tristes, de gente escravizada pelo vício dos parentes. Filhos expulsando mães velhinhas de casa, ameaças constantes de traficantes, dramas difíceis de serem medidos por quem não está nessa situação. A orientação deste grupo, muito polêmica, é a de não proteger o viciado. Se a pessoa já é adulta e está infernizando a vida da família, deve ser excluído do convívio familiar. Eles não mandam ninguém expulsar o filho de casa, mas se esta for a única alternativa para o resto da família conseguir dormir, eles o encorajarão a fazê-lo. A questão colocada é que o doente escolheu esse caminho. Pode não ter escolhido o vício, mas dificilmente não conhecia os riscos quando experimentou uma droga, mesmo as lícitas. A família, por outro lado, não escolheu nada e não pode arcar com a responsabilidade do outro. Se não pode resgatar o outro, tem que se salvar como pode, porque não é justo com o resto da família (ouros filhos, irmãos, netos) condernar-se a infelicidade por uma problema que não pode ser resolvido.

Não tenho aqui a menor pretensão minimizar o drama de famílias que não sabem mais como lidar com seus filhos dependentes químicos, nem de dizer “eureka”, ó como e fácil. Aliás, acho que ninguém em sã consciência tem, nem meu amigo junkie. Mas uma coisa é meio clara, pra mim, pelo menos: num certo nível de dependência, o dependent está morto socialmente. Já não interessa mais o amor da família, as obrigações do dia-a-dia, o futuro, as leis. Como a família vai lidar com um morto-vivo? Com a morte social de um corpo físico? Seria essa morte reversível? Ouvi falar de um sujeito de 42 anos internado numa clínica de recuperação pela 24ª vez. Alguém aí acredita que um sujeito que vai pela 24ª para a rehab, vai ficar bom? É tudo triste demais pra ser negligenciado.

Só que eu acho que o buraco do vício é bem mais embaixo. As drogas ilícita alteram a consciência, viciam, fazem com que as pessoas coloquem sua vida e a dos outros em risco. Só que o álcool, servido até em batizado de criança, faz a mesma coisa. Mesmíssima. O que muda é o perfil: como consumir drogas ilícitas é uma trangressão, de maneira geral, o tiozinho “cidadão de bem” vai preferir a cachaça ou o whisky. E tem outra: comportamentos compulsivos e antissociais não dependem da ingestão de substâncias químicas. Tem gente que perde a casa da família no jogo. Há quem se vicie em sexo. Outros, em comida. Como controlar tudo isso?

A minha (pouca) experiência na área, fruto de alguma observação, é que a dependência química e uma das consequências de um problema, e não a origem de todos os males. Alguma coisa mal resolvida fez com que o prazer virasse fuga. Algo a ser observado e tratado, mas que se não se manifestasse com cocaína, se manifestaria com cartão de crédito. Daí alguém me diz que “ah, pode ser assim com cocaína até, mas com crack, o cara vicia na primeira”. Eu realmente não acredito que alguém prove crack por curiosidade, como quem prova um baseado.

O fato é que o discurso super moralizante é mentiroso e ineficiente. Porque se eu disser pra um adolescente que todo cara que prova cocaína se vicia em morre, e na outra semana ele conhecer um cara como meu amigo, cheirando numa festa no sábado e trabalhando numa boa na segunda, vai ficar clara a minha ignorância na realidade dos fatos. Enquanto a gente não falar claro sobre drogas, com gente de todas as idades, sem julgamentos, e admitindo que as pessoas se drogam porque dá barato, as pessoas não vão ter informações suficientes pra fazer suas escolhas de maneira consciente. Penso em ter filh@s e vai ser difícil desempenhar papel de mãe sem ser hipócrita, porque nunca fui junkie, mas nunca fui santa também. Vou ser obrigada a falar a verdade: que tem coisas muito divertidas por aí, mas talvez não valha a pena correr certos riscos para prová-las.

2 comentários:

  1. Iara,

    Acho essa problemática das drogas um tanto complexa...

    Ó, desconsiderando questões de ordem social/política, posso lhe dar um bom panorama pessoal da coisa, pois vivi 8 anos com um drogadito - ou adicto, como eles mesmo dizem.

    Sim, ele começou fumando um baseadinho, e comigo, claro! (tenho a sorte de não ser adicta e poder consumir aquilo que quero, na hora que quero, na quantidade que quero, e sem precisar da coisa no outro dia)

    Ficamos bom tempo nessa(fumando maconhazinha), pelo menos eu acreditava que sim... Mas nos últimos 3 anos do nosso relacionamento ele já estava na coca, e afundando-se pra caráleo. Até crack rolava, mas quando a grana não era suficiente pro pó. A sorte é que ele era um filhinho-de-papai, senão, com certeza teria roubado pra conseguir.

    Ele foi internado duas vezes. Eu e a família frequentavamos grupos para familiares&coodepentendes.
    Sua segunda internação foi praticamente compulsória, pois as portas das casas já estavam fechadas pra ele - orientação dada no próprio grupo de ajuda à familiares.

    Ó, mas ele acabou se dando muito bem. Saiu extremamente determinado da clínica, e acredite ou não, hoje é assistente social, tem uma comunidade terapêutica maravilhosa, e está há 7 anos limpo.


    Sim, esse é o pai da minha filha e tenho muito ORGULHO da sua trajetória enquanto ser humano, embora tenha passado horrores ao lado dele - que fizeram com que meu amor por ele se esvaísse...


    Mas então, eu acredito que essa predisposição à droga seja completamente diferente do que à comida, consumo, etc. O impulso sim é o mesmo.

    Ao meu ver, a adicção(e seja ao que for) é sim uma doença bio-psico-social...



    Beijos!

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  2. Sabe, um dos motivos que eu me arrenpendi de ter escrito este post deste jeito é que eu acho, realmente, que ele pareceu leviano. Porque lendo a sua história, que é bem mais pesada que a minha, percebo o quanto é um assunto delicado. Você tem razão: há uma predisposição química em algumas pessoas, então eu fiz uma simplificação absurda comparando com outros vícios, e só agora me dou conta. Eu, como você, tenho a sorte de não ter essa tendência. Durante anos fui fumante esporádica. De vez em quando me dava vontade, fumava em baladas, mas nunca fui dependente de nicotina. Há 1 ano e meio, minha vontade acabou, assim, do nada. Mas não é por isso estabelecer que eu posso estabelecer as coisas do ponto de vista do meu organizmo, de como ele reage.

    E acredito sim em recuperação. Mas eu só acredito quando há um interesse do adicto, e a gente sabe que, em alguns casos, a vontade de viver com qualidade foi comprometida. E infelizmente a vontade da família não é o suficiente pa pessoa sair dessa. Seu ex foi corajoso, guerreiro, e batalhou por isso. E aí é uma história de final feliz, pra todo mundo que pode tê-lo de volta e bem. Eu conheci muitas histórias assim, também. E o denomidar comum em todas era a imensa força de vontade do adicto.

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