sábado, 12 de fevereiro de 2011

Ainda sobre o anterior

Adorei a repercussão do post anterior (blogueira modesta, fico muito envaidecida), mas de repente foi um tal de aparecer gente fofa e justificando e, definitivamente, a ideia não era essa. Eu sei que, principalmente pra quem mora em cidades menores, o serviço de transporte público pode ser muito ruim, e o post não é um convite ao martírio em nome da cidadania. Longe de mim. Mas vou falar mais um pouco do assunto, até pra despersonalizar a questão.
Já contei aqui que faço uma especialização em urbanismo e administração pública. E, olha, lá, eu estudei História no colégio, mas só na pós fui me ligar que a nossa urbanização aqui no Brasil acontece simultaneamente à instalação da indústria automobilística. Na Europa a urbanização é muito mais antiga, então o carro não interferiu muito no desenho das cidades. Aqui, o automóvel foi senhor e rei do projetos urbanísticos. Então, não dá mesmo pra gente pensarem cidades médias brasileiras, muitas das quais passaram a ter mais de uma centena de milhar de habitantes e equipamentos urbanos como universidades só nos últimos 30 anos, sem a presença maciça do automóvel. Isso justifica o não investimento em transporte público? Em termos. Por um lado, fica mais cara financiar um sistema quando a demanda é menor. Por outro, por conta do automóvel, estabeleceu-se no Brasil a noção de que transporte público é coisa de pobre. E coisa de pobre nessa terra é algo a ser negligenciado. Então, não tô aqui pra dizer pra ninguém: “olha, torra aí 1 hora no sol esperando busão lotado”.
Mas eu não vivo numa cidade de 180 mil habitantes. Eu vivo numa aglomeração urbana que concentra umas 4 vezes mais habitantes que a região metropolitana de Madrid. E tem gente (eu inclusive) que tem grana pra pagar aluguel ou ser proprietário nos lugares onde estão concentradas as melhores ofertas de serviços urbanos. Então, morar, sei lá, em Cuiabá, e andar de carro o tempo todo pode fazer muito sentido. Morar nos Jardins, em Pinheiros, na Vila Madalena, em Higienópolis em São Paulo e pegar o carro pra tudo é muito estranho pra mim. Eu já cheguei a ouvir de colega de trabalho coxinha, que morava a 3km do trabalho que “não dá pra ficar sem carro, né?”. Daí a gente sabe que tem gente pegando ônibus com cadeira de rodas e tem vontade de mandar pastar. Porque é disso que se trata. As pessoas se deslocam mesmo em situações muito adversas. O que não significa que a gente tenha que se submeter a elas, mas acho que vale muito pensar um pouco nas nossas escolhas, não aceitar o padrão como única solução possível, não virar um reprodutor acrítico do modelo.
No mais , eu respondi a alguém que se ofendeu dizendo que tem direito de parar na rua porque paga IPVA que não é bem assim. Que o IPVA é pra cuidar das ruas e tal. E TOTAL asneira minha, me dei conta depois. Pequena explicação de administração pública agora. Existem impostos, taxas e contribuições. Começando pelas últimas, contribuições são vinculadas, como era a CPMF, que saía das movimentações financeiras com um destino pré-determinado, financiar a saúde pública (sem entrar no mérito se a coisa era justa ou não, só a explicação teórica). Já as taxas são vinculadas diretamente a um serviço prestado, como era a taxa do lixo aqui em SP. Mas imposto, não. Imposto não está vinculado a contrapartida. Quer dizer, eticamente falando, claro que o Estado tem que nos retornar em serviço, mas não necessariamente pro proprietário do veículo que pagou o imposto. O IPVA pode, por exemplo, financiar a educação pública. E mais: cuidar do estado de conservação das vias locais é atribuição da prefeitura, não do governo do estado. Há um repasse importante de verbas do IPVA para o domicílio em que o veículo foi licenciado, que aí até pode ser usado pra cuidar das vias, mas não necessariamente, é esse o ponto. Tem que pagar porque tem carro, mesmo se a rua for de terra e esburacada. Então, se a prefeitura resolver estabelecer zona azul pra cobrar estacionamento nas ruas não tá cobrando em duplicidade: o IPVA tributa a propriedade, a zona azul tributa o serviço prestado, a vaga de estacionamento. Até porque você paga IPVA num estado, mas pode viajar e deixar o carro parado em outro.
Encerro contando uma historinha que acho que nunca contei antes por aqui (se contei, desculpem, hein?), sobre uns colegas do antigo emprego. O papo na mesa do almoço era o trânsito pesado. E alguém lembrou que, impressionante, né?, a maior parte dos veículos circula só com o motorista. E, bom, as pessoas poderiam se organizar pra irem juntas. E começaram a lembrar de um ou dois colegas que era mais ou menos vizinhos, com quem poderia combinar algo do tipo. E na sequência foram aparecendo os impedimentos do tipo “mas fulano é chato”, “mas tiraria minha liberdade”. Daí, no final, ninguém podia revezar com o colega, porque vivemos num tempo em que a liberdade individual de se deslocar usando o próprio veículo é mais importante do que tentar contribuir para a diminuição de problemas como engarrafamentos e poluição. E esse é o grande problema contemporâneo: a gente acha que nossa liberdade individual é intocada, mesmo que seja prejudicial ao bem-estar coletivo.

12 comentários:

  1. Matou a pau!
    Cobrar para estacionar na rua é uma das formas de desestimular o uso do carro. Não faz tempo a CET em São Paulo extinguiu um monte de vagas. Esse tipo de ação tem muito mais efeito que a gente apelar apenas pra boa consciência das pessoas. Quando a gente não tem (ou não usa) carro em nome da causa é menos produtivo que quando a gente abre mão do carro porque é mais vantajoso assim.

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  2. Gostei muito do post, especialmente a distinção de imposto, taxas, etc. que muitas pessoas confundem. Gostei, também, da reflexão sobre as relações contemporâneas, direito individual e bem estar público. Mas, né, fiquei mesmo foi toda boba e sorridente imaginando que eu tô ali, entre a gente fofa.

    PS. Não rola um postzinho convidado para o mês das mulheres? hein? hein?

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  3. Já fui do tipo de reclamar dos impostos, quando me dei conta que não entendia realmente, calei. Até segunda ordem, quando a reclamação passasse de repetição incoerente à cobrança dos direitos suprimidos ou surrupiados, né.
    E o post veio de lembrança, "ainda faltam coisas Rosa, básicas..."Então pra muita coisa, só escuto.
    Bj
    Ah! Ainda sobre a liberdade individual, eu sempre achei estranho o direito de um acabar quando começava o outro, e quem determina o que isso é um direito e não uma invasão do direito do outro? Mas aí viver aqui (EUA) me fez entender que todo mundo tem direito ao mesmo tempo e um direito entra inevitavelmente no direito alheio se resolvendo a questão com advogado. O meu medo é que isso vá inserido nos ingredientes da Coca-Cola. Quando vc conta sobre seus amigos eu entendo que medos nascidos de reflexões sem sentidos podem ser na verdade intuição.
    Bj

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  4. Iara, fui lá ver meu comentário, pra ter certeza de que era uma fofa se justificando. Em parte. Porque, né, fiquei "me explicando". Mas sustento: muita coisa poderia ser melhorada com planejamento em outras áreas: a ideia de escolas de qualidade em todas as áreas da cidade, p.ex. Ter a opção (em alguns países é obrigação mesmo, e aí vc torce para que a escola do seu bairro seja boa) de matricular seus filhos perto de casa seria sonho para muita gente, acredito. Eu adoraria poder matricular meus filhos em uma escola pública do bairro e dormirt tranquila sabendo que sua educação formal estaria em boas mãos. Isso, em larga escala, teria grande impacto no trânsito de muitas cidades. Enfim, já tagarelei demais. Ótimo post, de novo.

    Bj
    Rita

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  5. Ai, Iara. Olha. O dia que comentei aqui eu estava na revolta!hahahaha Queria não me incomodar com a lotação do bus, mas não dá. E olha que eu leio livro, ouço música, mas não dá. As pessoas não tem educação. A básica, sabe? Sangue no zóio todos os dias. rs
    beijos

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  6. Post ótimo! E eu acho bem bacana que o seu blog seja frequentado por gente super fofa que acha que PRECISA se justificar porque usa carro. A maioria nem acha né? rss

    E a parte do direito individual x direito coletivo matou a pau.

    Beijos

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  7. Iara, imagino que em 20 anos no máximo o cenário urbano vai ser totalmente outro (você com certeza sabe disso muito melhor do que eu), porque existe um limite pra capacidade das vias urbanas. E só quando chegar ao limite é que vai haver mudança de mentalidade. Engraçado que antes eu achava que, se mais gente tivesse uma atitude política em relação ao transporte coletivo, haveria pressão para melhorar, mas é muito utópico, só mesmo quando não tiver outra opção, e a classe média for obrigada a usar é que os governos vão prestar mais atenção a isso, você não acha?

    Outra coisa que me irrita no planejamento urbano é que não para de sair empreendimentos em áreas completamente saturadas, por exemplo, Jaguaré e Leopoldina, tudo verticalizado. Não é muita falta de responsabilidade da administração desta cidade?

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  8. até 2004 eu NUNCA tinha ficado sem carro. eu usava para ir até a esquina comprar pão.
    mudamos para são paulo e ficamos 4 anos até podermos comprar um outro.
    em sampa realmente não se usa carro para percurso curtos até pq passariamos mto mais tempo presos num engarrafamento.
    o clima nos permite andar da estação paraiso a rebouças, rs.
    outro dia quase saimos de carro durante o dia, mas dai era o dia mundial sem carro, e resolvemos ir de metro!

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  9. Gente, eu sou muito relapsa, e às vezes tenho preguiça de responder, desculpem...

    Babi,

    Em Amsterdam o povo usa bicicleta também por isso. Porque custa uma fortuna deixar o carro na rua. Não tem essa cultura de estacionamento e o cara paga 20 euros pra deixar o carro na rua o dia inteiro.

    Luci Borboleta,

    A explicação foi patrocinada pelo curso de Economia Urbana e Gestão Pública da PUC, viu? =D Sobre guest post. Menina, olha só, eu fico honrada com o convite, mesmo. Mas já deu pra notar que regularidade não é meu forte, né? Não quero me comprometer com algo com você e dar mancada, queridona. Quem sabe quando eu voltar a assumir uma rotina por aqui? Por enquanto, tá complicado...

    Rosa,

    Eu acho mesmo essa questão do espaço algo super complicado de estabelecer. Porque longe de mim dizer que não pode sair de carro por aí. Mas a gente tá chegando num ponto aqui em SP que beleza, todo mundo sai de carro, e ninguém sai do lugar, como a Cecília comenta abaixo. Porque qdo você leva 1 hora pra fazer de carro um trajeto que levaria 10 minutos a pé, tem algo muito errado, e a gente já tá nesse ponto aqui...

    Rita,

    Você tá certa. Esse exemplo das escolas é excelente mesmo. Ensino básico de qualidade independentemente da região que a pessoa mora melhoraria demais o trânsito e a qualidade do ar. Como eu te disse, eu compreendo quem se vê numa situação em que não possa abrir mão do carro. Mas celebro não ser essa a minha condição.

    Dani,

    Pois é. Só de ler as pessoas explicando o porque usam o carro eu já acho lindo, já vale o post mesmo. Porque o comum é achar que carro é o meio de transporte por excelência, que não há nada a pensar a respeito.

    Cecília,

    Eu acho que este ponto de não consegui mais rodar não demora 20 anos não, viu? Tem região que já é inviável. E o que me impressiona é justamente as pessoas se acomodando com a idéia de ficar um tempão no carro sem sair do lugar.
    Sobre empreendimentos imobiliários eu assino embaixo. Você acredita que ainda se constrói edifício comerciais de 30 andares na região da Berrini? Pois é, não deveriam, mas constroem, apesar de eu ter colegas que enfrentam 20 minutos de congestionamento para sair do estacionamento do prédio, porque a rua tá parada. É tudo tão surreal!

    Longa Haired Lady (que nick legal, vontade de me apresentar como "short haired lady")

    Pois e, ficar sem carro, pra quem sempre usou, é hábito também. Sabe aquele lance de que a necessidade faz o ladrão. Um dia você é obrigada a ficar sem e descobre que, surprise surprise, a vida continua. E isso é bom, né?

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  10. Parabéns pelo post.
    Também compartilho desses mesmos pensamentos.

    Obs.: Sou de Cuiabá, e infelizmente o trânsito lá está imitando o daqui de São Paulo, não existe Copa do Mundo que ajude a melhorar a infra-estrutura daquela cidade. Além do mais, Cuiabá tem um agravante o "Calor", imagine andar a pé em uma cidade de 40ºC ?

    Infelizmente o automóvel ainda para muitos brasileiros é uma conquista, isso é cultural, as pessoas adoram comprar carros, mesmo sabendo que este vendidos aqui são os mais caros do mundo.

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  11. estou voltando pro rio de vez em julho, aluguei um apt na lapa e vou tentar, pelo menos no começo, nao ter carro. vamos ver se conseguirei. vou trabalhar de casa, e a lapa é central, então é tudo mais facil.

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  12. Gabriel,

    Entendo que andar a pé em Cuiabá dev ser "para fortes". Mas se houvesse um sistema de transporte coletivo eficiente com ar condicionado, melhorava bastante, né?

    Alex,

    Acho que você vai conseguir, viu? Até porque, pra quem vai pouco pra longe, é muito mais barato pegar táxi do que ter um carro, é fato.

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