sexta-feira, 23 de julho de 2010

Leituras feministas - "Testo Yonqui"

O título já é instigante. Só lá pela metade eu saquei que a idéia era ser "junkie" de Testosterona, no sentido de se viciar. Que "yonqui" é a gíria espanhola equivalente ao "junkie" inglês. Enfim, a Beatriz Preciado é uma filósofa que estuda gênero e teoria "queer", que vem a ser o comportamento de quem não é, ainda segundo o inglês, "straight". Ou seja, quem foge a equação pênis = homem = masculino / vagina = mulher = feminino e heterossexual. Ela é espanhola. Quem me deu o livro foi a Fe, amiga minha inteligentíssima que fez um mestrado no museu de arte contemporânea de Barcelona. A Beatriz foi foi professora dela.
E eu adoro livros que me provoquem muito. Porque eu posso escrever um blog, ter umas idéias mais arejadas e tal, mas eu não tenho nem dúvida de que o meu modelo de vida é super conservador. Sou funcionária de multinacional, heterossexual, vivendo numa relação estável e monogâmica com um homem um pouco mais velho, mais alto e que ganha mais do que eu. Já fui secretária, estudei francês na França e me sustentei como babá, enquanto marido, antes de me conhecer, morou na Alemanha e projetando aviões. Sentem os modelinhos padrão masculino e feminino bem desenhadinhos? Então não é porque não somos dependentes de automóvel, não temos discurso retrógrado que somos "modernos" ou revolucionários.
Mas a Beatriz Preciado é, e como dizem por aí, "dicumforça". Ela é lésbica, se identifica mais com o gênero masculino (pelo o que eu entendi), mas acha que essas definições de gênero são autoristarismo estatal. Então não, ela não pretende fazer nenhuma cirurgia de mudança de sexo, nem deixar de ser Beatriz. Mas ela começa a se aplicar testosterona como experiência, meio que revivendo o percurso de Freud com a cocaína e de Walter Benjamin com o haxixe. Não sei se todo mundo sabe, mas homens e mulheres fabricam testosterona e estrogênio, o que muda é só a quantidade destes hormônios. Então, a testosterona não vai tranformá-la num homem, mas reforçar certas características consideradas como masculinas, como a quantidade de pelos no corpo, o cheiro do suor e a voz, por exemplo. E ela reivindica esta experiência como um direito inalienável de qualquer cidadão, o de poder se relacionar com seu corpo à sua maneira.
Enquanto se aplica testosterona, ela defende sua tese de que vivemos numa sociedade "farmacopornográfica". O que o carro representou para a economia e o comportamento no século XX, a pornografia e a indústria farmacêutica o fazem no século XXI. E eu não poderia concordar mais, principalmente quando ela, numa analogia das melhores, diz que as drogas ilegais são para a indústria farmacêutica o mesmo que a pornografia é para a indústria do entrenenimento. Ambas são variantes extremas e carentes de "status", mas subproduto de instituições sólidas. Muitos filmes não são pornográficos, não explicitam nada, mas as fantasias estão ali, o objetivo continua sendo gerar excitação sexual no espectador. Na TV a cabo essa semana tava passando um filme com o Tommy Lee Jones em que ele faz um policial que tem que proteger 5 cheerleaders gostosonas testemunhas de um crime. Ce vai me dizer que isso não é fantasia erótica de marmanjo? As moças de sainha e o cara com a arma sempre na mão? Só porque tá todo mundo vestidinho e pode passar na sessão da tarde não é de sexo que estamos falando?
E os remédios. Aqui é onde o livro manda melhor, na minha opinião. Porque se o transgênero toma hormônios, a irmão toma anticoncepcionais, mamãe na menopausa faz reposição hormonal, papai toma Viagra e o caçulinha Ritalina (pra quem não sabe, é o remédio mais popular pra crianças diagnosticadas como portadoras de déficiit de atenção e hiperatividade). Sem esquecer, claro, os antidepressivos. Preciado critica o feminismo por ter acolhido e celebrado a pílula anticoncepcional, sem pressionar pelo desenvolvimento e adoção de outras políticas contraceptivas. E aqui ela força a barra, na minha opinião. Porque a pílula não é bacaninha e inocente mas acho que ela é uma conquista, sim.
Mas a pílula. Então, meu problema de varizes foi agravado por ela. Eu sei disso. Fiz uma escolha consciente. Não me arrependo, prefiro ter feito essa cirurgia agora mas ter passado os últimos ano sabendo que estava protegida de uma gravidez não desejada. Mas com isso, só duas vezes cliente da indústria farmacêutica, exponho o meu corpo duas vezes. Ainda que ela esteja se aperfeiçoando e os efeitos colaterais sejam menores agora, eles existem. Entre eles, adivinhem? A queda da libido. Quem vem a ser um efeito colateral do uso de antidepressivos também. Lembro de um dia, anos atrás, em que jantava com um grupo de amigas. Todas inteligentes, viajadas, independentes. Todas a seis já tinham tomado antidepressivo em algum momento da vida (eu inclusive). Muita gente toma antidepressivo no mundo, e acho que são as mulheres as maiores usuárias. E muitas mulheres tomam pílulas. A gente comenta do absurdo de antigamente, quando se lobotomizava mocinhas inconvenientes. Hoje não precisa: a gente dopa todo mundo e beleza. Somos uma geração de mulheres infertéis quimicamente e que só tem tesão pra transar com o namorado - quando tem. Não é o paraíso machista por excelência? Ela questiona porque nunca se pensou em ministrar pequenas doses de testosterona para mulheres que tomam pílulas, para resgatar a libido. Mas é super mal visto politicamente. Como se a testosterona e a excitação sexual decorrente dela nos fossem proibidos. E a desculpa par não terem chegado a um equivalente feminino do Viagra é que nossa sexualidade é muito complexa. Mas doses mínimas de testosterona poderiam ser eficientes sem grandes alterações físicas. O livro conta (pág 144-146) que em 2004 o FDA, orgão amaricano responsável pela fiscalização de medicamentos, não autorizou o lançamento no mrcado de um patch de testosterona que seria ministrado pra mulheres que estivessem com a libido em baixa por conta da menopausa - mas claro que as que usam anticoncepcionais poderiam ser futuras consumidoras. Enfim, é o estado quem te diz que drogas a gente pode consumir ou não, a decisão é sempre política.
Olhem só, acho o uso de medicamentos muito legitimo em diversas circunstâncias. Acho que são muito úteis, e já vi pessoas queridas que estavam muita mal consiguirem se recuperar com a ajuda deles. Mas a última vez que me prescreveram antidepressivos eu estava só ansiosa e angustiada por questões externas, mas especificamente por não saber o que fazer quando terminasse a faculdade, coisa que acontece com todo mundo. E eu não tomei, continuo uma pessoa ansiosa e angustiada por diferentes motivos, mas posso viver com isso. Hoje, quando minha ansiedade bate forte, tomo um fitoterápico a base de maracujá, daqueles que não precisa nem de receita e pode dar até pra criança.
Enfim, não era pra ser tão longo esse post. E nem é uma resenha de verdade. Mas o livro traz reflexões interessantes sobre fenômenos contemporâneos da maior importância. Se alguém se interessar, só achei disponível no original em espanhol, infelizmente.

9 comentários:

  1. Interessantíssimo, Iara!
    Eu tenho uma amiga que faz uso de depressivos. Eu nunca tomei, nunca precisei. E espero não precisar, sabe?! Se for o caso, tudo bem, mas procuro evitar depender de remédios... sei lá!Mas é como eu disse: não é questão de querer, né?! É de necessidade... Espero que essa eu não tenha. =/ Ai e outra: não sabia que a gente perde um pouco da líbido tomando pílulas... Agora me diz uma coisa: Nós mulheres sacamos que perdemos? Ou é tão insignificante a proporção que não dar pra notar essa perda?

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  2. Ah esqueci de dizer que me interesso bastante mesmo por assuntos relacionados a nós mulheres, feminismo. Eu me considero, e sou, uma feminista. Apesar de nunca ter exposto meus pontos de vista por ex. E nunca ter levantado essa bandeira ao ponto de falar sobre. Mas é porque eu me sinto insegura pra falar de algo que outras pessoas, como vc, falam tão bem. Que argumentam bem! Lola é outra exemplo disso, né?! Mesmo eu tendo as noções argumentativas e etc, eu me sinto "a menos" indicada pra falar. UASHUAHSUAHSHAHS Sei lá! =/ Espero que um dia eu faça um poste tão bom qnt o de vocês...

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  3. Glória,

    Essa coisa de perder com a libido é muito pessoal. Acho que é um dado estatístico, e com certeza nem todas as mulheres sentem a mesma coisa. Há quem diga até que algumas tem mais disposição, já que se sentem protegidas contra a gravidez não desejada (transar morrendo de medo de engravidar não deixa a gente livre pra aproveitar o que está rolando, né?). O que eu posso te dizer é que, no meu caso, acho que fazia (porque eu parei de tomar há alguns meses) a a libido cair, mas que impactasse a minha qualidade de vida.
    E olha, eu agradeço muito o seu elogio, mas não se sinta insegura pra escrever sobre o que você pensa. Eu não sou nenhuma teórica super especialista também. Sou só uma mulher que tem consciência de que há uma desigualdade no mundo e está disposta a refletir sobre ela. E acho que isso eu o suficiente para me autodeterminar feminista. O resto é processo de aquisição de conhecimento, e você já está nesse caminho, claro!

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  4. Ola Iara!
    Nunca comentei por aqui, é a primeira vez que vejo seu blog... eu o encontrei através do blog da Rita. Queria, primeiramente, te parabenizar pelo post! realmente vc colocou questoes muito importantes sobre "o paraiso machista" ;-) e me deu vontade de ler este livro que vc citou, quem sabe nao consigo achar na versao em francês.

    Em segundo lugar (nao tem nada a ver com o post, mas nao posso deixar de perguntar), seu nome me intrigou, pq na familia que eu fui au pair eu sempre ouvia o nome da au pair anterior que tb se chamava Iara. Enfim, claro que pode ser so uma coincidência, mas como vc disse no inicio, que estudou na França e foi baba, eu fiquei mais na duvida ainda kkkk por acaso vc foi au pair da familia Vaissaire? desculpe se me confundi!

    Beijinhos Iara, e vou sempre passar por aqui agora! gostei muito! :-)

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  5. Ana,

    Fui au pair da família Vaissaire, sim. Ó que mundo pequeno esse? Você não chegou a escrever me pedindo dicas sobre eles (ou não? talvez tenha sido outra pessoa). Se foi você, sei bem que você passou por uns perrengues por lá, viu? Te garanto que são boas pessoas, mas segundo fiquei sabendo, eles estavam num momento bem ruim naquele ano. Mas espero que tudo esteja bem contigo, seja muito bem vinda!

    Bjo!

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  6. Poxa Iara entao é vc mesmo! que mundo pequeno mesmo!!!kkk que engraçado!
    Entao, eu lembro sim ter te pedido ajuda, e vc me ajudou muito. O problema é que nao consegui mesmo me adequar ao modo de vida deles, Principalmente com o Claude, que dizia sim o tempo todo para a filha :-/ mesmo eu dizendo nao, entao vc sabe né? A Lola era fofa, mas muito mimada e esperta, a culpa nao era dela, mas ela se aproveitava disso. Quando a Fabienne chegava eu falava com ela, mas ele dizia que nao fazia nada, entao ela acreditava no marido. hehehe
    E meus meses la com eles foram passando assim, fiquei 10 meses. Me lembro que no final eu fiquei muito doente e tive que arcar com todas as despesas, entao desanimei. Falei um dia com ela e avisei que nao dava mais, que ia sair. Nossa menina ai foi um drama, pois ela me mandou embora no mesmo dia. A minha sorte foi ter uma pessoa que me ajudou, pois eu nao tinha pra onde ir.... foi mesmo uma época dificil, mas sabe? hoje eu penso neles, e apesar de tudo, eu sei que nao eram pessoas ruins, eu sentia isso. Mas sentia também que havia uma grande confusao na casa deles naquela época. Mas eu so sentia, nao podia saber de nada.
    Mas bom, so pra te contar um pouco meu percurso depois disso!!!kkkkk ainda estou aqui na França. Mas vou embora no final do ano.
    E mais uma vez adorei seu blog! vou te visitar sempre!
    Beijos

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  7. Encontrei seu blog por acaso e vou aproveitar pra deixar meu piteco. Queria falar especificamente quanto aos antidepressivos: como a pílula, eles também são uma conquista! E das grandes...quem sofre de depressão sabe disso.

    Quando falo em depressão, me refiro a uma condição patológica mesmo (histórico de família, etc, etc). O problema é que muita gente confunde depressão com tristeza e baixo astral, e o buraco é bem mais embaixo (e que buraco). Por isso eu também sou contra os médicos darem tantas receitas de antidepressivos. Eu diria que na maioria dos casos há um certo exagero e a pessoa pode se virar sem (às vezes basta uma terapia). Em outros casos, é a melhor opção para o paciente mesmo (eu sei porque vivi isso na pele e tomo até hoje).

    Pra finalizar, já foi comprovado que o melhor tratamento para depressão clínica é uma combinação de medicamento e terapia. E eu só poderia concordar porque tomar só remédios é querer tapar o sol com a peneira. É preciso entender o processo pra conseguir sair dele. E não é nada fácil...

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  8. Benvinda Beth,

    Olha, eu acho que você tem toda razão. Acho que medicamentos, quando bem empregados, são excelentes. E eu conheço gente que precisava mesmo de medicamentos, então, de maneira nenhuma minha intenção com esse post era desvalorizá-los ou parecer preconceituosa contra quem usa. Mas acho que seu uso exige muita reflexão, sempre. Principalmente no caso destes que mexem com as emoções. E concordo quando você fala da terapia. Só a psicoterapia vai no cerne, né? Sem ela, a gente só trata o sintoma.

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  9. Acabei de ler Testo Yonqui nessa semana passada, pela indicação de uma colega cujo trabalho admiro muito... E não consegui me livrar da sensação que Preciado está trilhando, de forma acadêmica e filosófica, um caminho subjetivo muito aparceido com aquilo desbravado por William S. Burroughs em seus primeiros dois livros "Junkie" e "Queer".

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