sábado, 20 de novembro de 2010

Dia da Consciência Negra – e respeitando o timing

Eu sou uma moça muito desligada e achava que tinha de ter escrito o post que pretendia na semana passada por conta das discussões sobre o racismo na obra do Monteiro Lobato, ainda mais de ler este post aqui no Idelber. Mas aí ontem veio de novo a inspiração e caiu a ficha de que oi, o dia da Consciência Negra é hoje, zé mané. Tem timing perdido não. Pra melhorar, O Idelber colocou outro texto fera lá, da Ana Maria Gonçalves. Se você ainda não leu, recomendo fortemente.

Enfim, pra começar eu preciso contar que minha pela é branca. Tirei lá minha foto do twitter, e se alguém não viu antes, descrevo: sou um tipo não branca germânica, mas branca mediterrânea: pele branca amarelada, cabelos e olhos bem escuros (e um nariz grande que faz o povo achar que sou descendente de árabes – mas não sou). Meu fenótipo é uma combinação de vários outros, como acontece com boa parte dos brasileiros. Minha mãe tem a pele mais escura (e um nariz delicadinho). Minha avó tinha a pela ainda mais escura, nariz e lábios finos, cabelos bem pretos e bem lisos. Minha bisavó era, pelo fenótipo, negra. Mas não só por ele: era parteira e benzedeira numa cidade do interiorzão de Minas. E fumava cachimbo. Sim, o povo na família não diz isso assim - depois comento sobre – mas vó Joaquina era a própria preta velha. Dada a miscigenação, tenho parentes de todas as cores, e meu irmão tem olhos verdes. Tem uma foto sensacional do meu irmão pequenininho, loirinho, com a bisa preta, que eu adoraria ter digitalizada pra ilustrar este post. Se achar, depois eu subo pra cá.

Bom, então, do lado materno da família, as mulheres tinham pele mais escura conforme a idade (minha avó paterna era branca, e morreu antes de eu nascer, então não era referência). Tenho claramente a memória de que em algum momento eu acreditei que seria negra quando fosse velha. Sério. Pode parecer surreal, mas imaginava que quando fosse adulta seria mais morena como minha mãe, e aos 80, negra como a bisa. Lógico que isso deve ter durado pouco e logo percebi que, olha só, há vovós por aí que são branquinhas.

A outra informação importante (vai ficar longo isso...) é que tanto meu pai como minha mãe são de famílias muito pobres, com muito pouca instrução. Mas o meu pai fez faculdade, teve a vida toda um emprego com uma remuneração bacana que o permitiu dar uma vida confortável para a família. Eu e meu irmão estudamos em colégios particulares uma parte da vida. E durante alguns anos estudei numa escola com um perfil elitizado, mas cujas mensalidades cabiam no bolso do meu pai com algum sacrifício. Bom, um dia, quando eu tinha por volta de uns 9 ou 10 anos, a professora de Estudos Sociais nos deu um trabalho interessante. Tínhamos que contar a história da nossa família, entrevistando nossos avós para saber sobre seu passado. Mas aí vinha o detalhe: o foco era o país de onde veio a família. Portugal, Itália, Japão, Líbano, enfim, estes lugares que exportaram gente pra São Paulo. Daí fui eu explicar que olha, eu até sei que tenho lá um bisavô português, alguém na família disse que tem um espanhol, mas minha avó veio de Minas mesmo. Não, não servia. Tinha que ser estrangeiro. E me sugeriu entrevistar outra pessoa que viesse do mesmo país. Acabei, muito a contragosto, entrevistando uma vizinha espanhola. Sem nenhuma identificação: a Espanha não dizia nada pra mim. Nem sabia o que era paella até a entrevista – comida de antepassado, pra mim, era frango com quiabo e angu.

Meus pais não se deram conta do problema na época, não protestaram. E não vou dizer que tenho trauma porque não é verdade: esse caso ficou mais ou menos esquecido até a minha licenciatura, quando em alguma matéria vimos a questão dos "temas transversais", que devem ser abordados em todas as disciplinas. Só então eu me lembrei. De novo, não fiquei traumatizada, mas me lembro do desconforto na época. De me sentir a orfã, aquela que não tem passado e precisa pegar emprestado do da vizinha. Fora isso, hoje tenho a consciência de que minha avó, que vivia comigo na mesma casa, não teve o direito de ter sua história reproduzida e valorizada - o que é muito mais revoltante do que meu incômodo. Dentro de casa sempre imperou o respeito e a tolerância, mas boa parte da família é racista – contavam piadas racistas e diziam que a vó e a bisa eram “morenas”. Mesmo a minha avó dizia que “de preta, já basta eu”. A falta de autoestima de quem aprendeu que, como negra, pobre e sem instrução, não tinha valor. E eu me dou conta do quanto é perversa uma atividade escolar que reforça isso. Bom, desnecessário dizer que não havia crianças negras na turma. Mas eu ouso chutar que, se houvessem seriam convidadas a entrevistar o português da padaria, com aquele papo de que todos descendem de portugueses também, né? O “embranquecimento” da população, tão defendido no começo do século XX.

A lembrança e a análise deste evento me ajudaram a amadurecer a minha defesa da cotas raciais. Eu, menina de pele branca e cabelo liso, tive o meu passado próximo discriminado e fui obrigada não a mentir (é, eu sou descendente de portugueses e espanhóis e alemães até, também) mas a editar a minha história pra que ela fosse “aceitável”. E na ocasião nem me passou pela cabeça que a escola estivesse errada: o problema era meu, ué. Fiquei imaginando então como é para a criança negra, aquela que só aprende que seus antepassados foram escravos e que a África é, olha só, a fornecedora de escravos - ponto. No geral não aprende nem de onde estes escravos vinham, de que países, a cultura deles, etc. Isso que chamam de “mesmas oportunidades para todos” os que defendem a meritocracia do vestibular sem cotas?

Enfim, o papo caiu nas cotas, mas nem é essa a questão. Fica muito claro pra mim que quem fica falando em “ditadura do politicamente correto” tá pensando só na sua infância idílica. Porque na minha infância nada romântica a escola me disse que a vovó ideal era a Dona Benta – mas a que eu tinha em casa, que teve doze filhos, trabalhou em garimpo grávida e não teve acesso à educação formal, lembrava mais a tia Anastácia. Minha avó já morreu, mas por respeito a ela e desagravo ao fato de que sua história não foi devidamente reconhecida em vida quando deveria, eu só posso condenar quem relativiza o racismo. Eu prefiro a preservação da autoestima das crianças negras à elevação da Emília a cânone intocável.

11 comentários:

  1. Iara, um post incrível. Queria ter o pensamento claro e organizado assim. Como não tenho, me limito a linkar os textos admiráveis lá no borboletas (rsrs).
    Sabe, cada vez mais percebo a sorte que tive. Meu colégio era de classe média e, ainda por cima, religioso (freiras) e tinha tudo pra reproduzir os valores tradicionais. Mas daí que não aconteceu nada disso, foi lá que fiz uma redação: Meu bisavô - quase escravo (porque ele só escapou porque nasceu enquanto vigorava a Lei do Ventre Livre)quando eu tinha 7 anos e todos aplaudiram e a professora elogiou muito e me fez perceber o valor e a coragem deste meu antepassado. Ai, ficou um comentário enorme e eu ainda tenho zilhões de histórias mas só queria dizer mesmo que é muito legal você compartilhar assim conosco, seus leitores. Beijos carinhosos

    ResponderExcluir
  2. Eu era contra as cotas, achava que ela ia aumentar o racismo, ia dividir, ia segregar. Foi o blog da Lola que abriu meus olhos. Vi uma tirinha fantastica de um branco montado nos ombros de um negro pra subir um barranco e quando ele chegava la em cima, o negro la embaixo pedia uma mãozinha pra subir e o brando não dava. perfeito!

    ResponderExcluir
  3. Post tao bacana, Iara, muito legal!

    La em casa, é todo mundo miscigenado tb: minha mae é branca tipo vc e meu pai mulato, as filhas tudo morenas e nao é que minha mae fala coisas como sua avó dizia" preto já basta o pai, ainda bem q saiu mais clarinha" Ai eu retruco:
    "Que horror, mae, como pode falar assim de preto, se o pai é e nós tb"
    Dai mae responde que da parte dela, preto é a coisa mais linda do mundo, que é por isso que ela amou meu pai, mas que na sociedade, a cor escura vai nos fechar porta e ela sabe disso.
    Aff, que mundo lamentalvel.

    Viva o dia da consciencia negra
    bjos

    ResponderExcluir
  4. Iara,
    eu passei por algo bem parecido na escola, só que eu não tenho - ou melhor acho que não tenho - negros na família, mas com certeza devo ter descendência de todas as tribo indigenas do sudeste. Ao fazer um trabalho bem parecido, a professora não se conformava que não tivesse imigrantes na família...rs Mas deixou eu fazer um trabalho sobre minha família, tirei 10, mesmo não falando tanto assim dos índios, afinal um dos meus bisavós era médico e foi herói condecorado na Guerra da Paraguai. Acho que além de consciência negra, devíamos ter um dia de consciência, simples assim. Eu tenho certeza que há muita gente como eu, somos descedentes de índio e com certeza alguns portugueses/holandeses (na parte pernambucana da família) e a verdade é que ninguém fala nisso. Preconceito é preconceito para todo mundo.
    Eu me casei com um autêntico brasileiro, o pai era português e minha sogra índia guarani de Santo Amaro. Minhas filhas entram na cota? Sim, a lei diz que sim. Mas ao olharem uma delas, muito branca, vão pedir que ela prove a alegação. Para eliminar preconceito devemos deixar de pre conceituar. Dia da consciência NEGRA também é preconceito e nós outros?
    bjs
    Jussara

    ResponderExcluir
  5. Lu borboleta,

    Então, que bom que sua experiência foi outra. Como eu te disse, eu nem lembro da minha escola ser assim, de maneira geral, um lugar discriminatório. Era um Colégio de freiras, uma delas era negra e a sobrinha também estudava lá. Mas elas (a sobrinha e a freira) era americanas, então tenho quase certeza de que, nessa atividade, a menina se identificaria com seu país. Complexo de vira-lata o nosso, né?

    Amanda,

    Eu acho o assunto das cotas complicadíssimo. Porque eu concordo que ele cria um conflito. Mas é melhor criar esse conflito e forçar o debate, do que prevalecer essa dominação supostamente cordial. Muita gente racista é contra as cotas (note que eu não acho que todo mundo que é contra as cotas é racista, porque a pessoa pode ser contra por uma série de motivos) justamente porque elas forçam esse debate mesmo.

    Ana,

    Eu até entendo essa postura da sua mãe. Pais e mães não querem que os filhos sejam vítimas de preconceitos. Mas é lógico que, quando ela diz esse "ainda bem", tá estabelecendo um valor, né?

    Jussara,

    Olha, eu não poderia discordar mais de você, me desculpe. Não estou falando do caso das suas filhas especificamente, mas falando de mim: eu sou afro-descendente, mas a sociedade não me identifica como negra, não me discrimina como negra, não me exclui como negra. A política de cotas não é pra mim, e não é pra um monte de gente que tem avós negros. Ela é pra quem é vítima de exclusão. Eu não sou e jamais seria. Não por minha cor de pele. Em outro país, talvez, por minha origem latina. Então, esta não é uma política pra mim.
    E sobre consciência, a gente tá falando de valorizar quem é desvalorizado pelo sistema, quem no geral tá fora da estrutura de poder. É o caso das mulheres, dos homossexuais, dos negros. Por isso nunca vai ser a mesma coisa usar uma camiseta escrito 100% negro ou uma 100% branco. Por isso não faz sentido falar de orgulho hetero. Por isso não faz sentido falar de políticas inclusivas pra homens. A gente não precisa incluir grupos hegemônicos. E sendo fenotipicamente branca, isso pra mim é muito claro.

    ResponderExcluir
  6. Iara, o texto da Ana Maria foi uma das coisas mais lúcidas que já li nos últimos tempos.

    Jussara, eu acho que relativizar o racismo não é o melhor caminho, sabe. Fica meio com ares de forçar a barra para não assumirmos como nossa a enorme batalha social que constitui o combate ao preconceito de cor. Existem outros preconceitos e manifestações de segregação? Claro, acho que ninguém discorda disso (sofri bullying na infância por ser muito branca), mas esse não é exatamente o ponto. O ponto, ao que me parece, é mais o fato de que a população negra desse país tem sido alvo de segregação social desde sempre e negar esse fato através de um discurso de "vitimização" parece boicote. Você vê outros preconceitos? Beleza, combata-os também. Mas não acho que questionar a tentativa de resgatar o orgulho daqueles que sempre estiveram à margem, em processos seculares que deveriam nos matar de vergonha, seja uma boa alternativa. Ontem alguém me falou algo como "mas aí vamos nos preocupar também com toda criança que sofre preconceito por ser gorda, por ser issou ou aquilo?" Minha resposta é "sim; enquanto for preciso matar um leão por dia para que crianças cresçam felizes com suas condições, que assim seja". Vale a pena, acho eu. E vamos olhar o contexto: dia da consciência negra é preconceito?? Ai, não é não. É resgate, necessário. Eu queria viver no mundo onde essas celebrações não fossem mais necessárias, mas,né, estamos bem longe disso ainda.

    Iara e Amanda, a essas alturas do campeonado, eu AINDA não tenho uma posição definida em relação às cotas, acreditam? Nem sou ferrenhamente (essa palavra existe?) contra, nem totalmente a favor: não sei mesmo. Na dúvida, apoio. Mas, putz, acho complexo pra caramba.

    Beijos,
    Rita

    ResponderExcluir
  7. Legal o post! Tenho verdadeira birra de qualquer pessoa que fala em ditadura do politicamente correto.
    Desde quando tentar combater os próprios preconceitos e os dos outros e respeitar os outros é ser "politicamente correto"? Só mesmo na cabeça de quem é um preconceituoso imbecil e não consegue aceitar que quem não é, está sendo sincero.

    ResponderExcluir
  8. Iara e Rita,
    talvez não tenha me feito entender!Nenhuma das duas falaram da desvalorização dos descendentes de índios, isso não existe? Minhas filhas são formadas e não precisaram de cotas!Rita eu também queria muito viver num mundo onde essas celebrações não fossem necessárias, mas só se lembrar de mulheres, homossexuais e negros não é esquecer de tantos outros? Porque, e eu só gostaria de entender, não tem dia de consciência árabe, judia, japonesa, índia ou etc. isso não é discriminação?
    Iara eu também estou falando de valorizar quem é desvalorizado pelo sistema, quem no geral tá fora da estrutura do poder. Indios até hoje são tutelados pelo estado como se fossem crianças! São cidadãos de segunda classe e existe uma grande massa, principalmente no norte do país, de descendentes que lutam para serem aceitos pelo que são e não por serem exóticos. O assunto é complexo e cheio e meandros mas é um ssunto para e pensar!
    bjs
    Jussara

    ResponderExcluir
  9. Jussara,

    A questão do índio eu entendo perfeitamente. E existe um dia do índio - mal trabalhado politicamente, mas existe. Mas árabes, judeus ou japoneses não são povos discriminados historicamente no Brasil, de jeito nenhum. Uma coisa é as pessoas fazerem piadinhas de mau gosto, estilo "sabe a do português?". Outra é ter tido, historicamente, menos acesso à cidadania. Isso aconteceu com negros e índios, mas não com os descendentes de imigrantes estrangeiros. Taí a classe média de São Paulo que não me deixa mentir.

    ResponderExcluir
  10. Iarinha, licencinha para responder à Jussara, de novo?

    Ju, querida, você leu meu comentário?
    Repetindo:

    "Existem outros preconceitos e manifestações de segregação? Claro, acho que ninguém discorda disso"

    e

    "Você vê outros preconceitos? Beleza, combata-os também."

    Por que então você me responde com "só se lembrar de mulheres, homossexuais e negros não é esquecer de tantos outros?"

    Como assim? Eu disse, com todas as letras, no final do comentário, que topo matar um leão por dia para combater QUALQUER manifestação preconceituosa, não disse? Não entendi sua resposta ao meu comentário, juro.

    Mas, independente disso, o fato de eu não ter falado da desvalorização dos descendentes de índios não significa que eu ache que o problema não existe. Eu estava falanda do racismo contra negros, esse era meu foco. Provavelmente vou passar a semana falando da violência contra a mulher o que, em nenhum momento, deverá ser confundido com suposta opinião de que não exista violência praticada contra homens e crianças, por exemplo. Beleza? É que esse vai ser o foco da semana - um foco necessário, né?

    Bom, no final, resta o seguinte; todas somos contra manifestações preconceituosas. E isso vale muito.

    Beijos
    Rita

    ResponderExcluir
  11. Eu tenho uma mãe não negra. Uma família inteira não negra e que calhou de ser o lado da família com o qual eu tinha mais contato. Então conte um comentário racista e eu já ouvi over and over and over.

    Eu acho engraçado que eles sempre acham que qdo falam "preto" pejorativamente, "nego desassuntado, nego descompreendido, nego que não sabe seu lugar" tão falando de negros, não de mim.

    E eu não tenho, né? História. Só do lado de cá da família: o bisavô espanhol (italiano?) que tirou a índia da tribo e tiveram a minha bisavó.

    O passado do outro lado da família sempre ficou escondido no lugar da vergonha, ninguém sabe. Mas pelo menos era todo mundo preto mesmo. Nunca coube chamar de moreno.

    Anyway, post excelente. Beijocas

    ResponderExcluir