terça-feira, 7 de setembro de 2010

65 anos de subversão

Amanhã é aniversário do meu pai. E eu, que sou a super-queridinha ainda não escrevi um post sobre ele. Meu pai é assim: o sujeito mais tranquilão do mundo, e o sujeito mais subversivo ao mesmo tempo. Não fuma, parou de beber há anos, nunca se drogou, mesmo com alimentação é um sujeito comedido – só não deixe uma goiabada e um bom queijo perto dele, porque, na volta, periga não encontrar nada. Minha mãe faz um sucesso danado, porque é muito mais expansiva, mas é possível não ir com a cara dela, porque ela pode parecer invasiva pra quem for muito reservado, por conta justamente de seu excesso de entusiasmo. Como meu pai é mais na dele, é mais difícil despertar reações intensas, para o bem ou para o mal. Costumo dizer que quem não vai com a cara dele tem algum problema, porque ele simpatiza sem invadir seu espaço, sabe? E é um sujeito super tolerante. Lembro da adolescência, ir em baladas com amigas, e a gente achar um carinha bonitinho, mas elas dizerem que “já imaginou apresentar para o pai”? Pois é, meu pai nunca foi esse pai de família padrão, cidadão de bem aos moldes do Professor Hariovaldo. Nunca aconteceu, mas tenho certeza que ele não se assustaria com um genro de dreads músico alternativo. Quando eu fiz a minha tatuagem, o único comentário foi que ele achava burrice pagar caro para se auto infligir dor. Tipo, ele não conseguia conseguir entender o sentido, mas não era um problema moral, nunca foi.
Mas tem mais. Várias situações em que eu constatei que tinha um pai diferente. A primeira vez que eu anunciei que ia à Parada Gay, ele ficou pensativo e disse que não gostava muito de aglomerações, mas achava que deveria ir também pra expressar apoio, afinal a manifestação era pró direitos civis, direitos que são os dele também, oras. E bom, eu sou a conservadora lá de casa, votando na Dilma. Meu pai vai votar no Plínio e meu irmão vai anulá-lo, porque é anarquista há anos. E lembro do meu pai contemporizando sobre o anarquismo do meu irmão. Dizia que meu irmão estava certo no fundo, que se o Estado só servia pra reprimir a população, garantindo a manutenção garantindo o status quo, há que rebelar-se, afinal (!!!). Não imaginem meu pai um sujeito de longas barbas, sandálias de couro e camisetas surradas. Meu pai tem horror a camisetas surradas. Não gosta que a gente use nem pra dormir. É um senhor sem ostentação, mas muito bem apresentável, não combina com este estereótipo do comunista-sujinho.
Tem mais, quando ele se aposentou, fez uma caminhada de 300km entre Águas da Prata e Aparecida do Norte, chamada “Caminho da Fé”, e promovida como uma espécie de Santiago de Compostela brasileira. Mas meu pai é ateu, foi pra curtir o visual, e o desafio. Ele foi educado em seminário, e teve momentos e reaproximação de Igreja. E quando ele se reaproximou, foi pra participar. Ele não conseguia só ir à missa aos domingos. Não tem meio termo pra ele: um dia participa da liturgia e faz a celebrações quando o padre não está, no outro conclui que não acredita em nada disso e é ateu. Quando ele se afastou, o pessoal da Igreja achou que ele tinha se desentendido com o padre. E foram lá em casa perguntar o que rolava. Abordavam minha mãe na Igreja e tal. E ele virava pra mim, super constrangido, me perguntava como ia fazer pra contar pras pessoas que “olha só, Deus não existe. Até tentei embarcar nessa com vocês, mas não rola...”.
Meu irmão usou cabelos compridos por anos. Dos 13 aos 22, mais ou menos. E as pessoas achavam que meu pai poderia se incomodar com aquilo. E nunca se incomodou, nunca achou aquilo importante. Quando meu irmão tinha uns 14, começou a fazer um curso técnico numa escola que, dizem, era financiada pela Opus Dei. E tava nas regras deles que todos os ingressos não poderiam ter cabelos longos. E todo mundo que entrava lá, cortava, e as famílias achavam bacana, porque era um bom pretexto. Só que meu irmão não queria cortar de jeito nenhum. E meu pai foi lá, com a Constituição nas mãos, defender meu irmão, dizer que eles não podiam fazer isso. Que lamentava por quem tinha sofrido a pressão, mas que era inconstitucional essa interferência na aparência das pessoas. Lógico que meu pai achava roubada o lance da Opus Dei, mas meu irmão teve que chegar a essa conclusão sozinho (e se hoje ele é anarquista, vocês podem concluir que sim, ele chegou).
Ah e tem outra ótima. Semestre passado meu pai concluiu o curso de Ciências Sociais. A quarta faculdade dele, mas ele achava que as outras (Filosofia no seminário, Administração e Contábeis numa particular bem ruinzinha) não tinha dado uma formação bacana, e queria ter essa experiência. E ele passou no vestibular com 60 anos. Os colegas mais novos do que eu, claro. Mas ele sempre teve um tremendo simancol, nunca tentou bancar o garotão, mas fazia um esforço sincero pra se integrar aos colegas sem estabelecer nenhuma espécie de hierarquia. Lembro de uma vez ele angustiado porque o grupo com o qual trabalhava tava meio devagar pra começar o trabalho, e ele não queria tomar a frente da coisa pra não parecer etarista. E durante a faculdade uma das minhas primas se casou no religioso. Irônico que só, meu pai não se segurou quando o cunhado entrou conduzindo a noiva ao altar, me cutucou e falou baixinho “lição de Antropologia: agora a gente vende a mulher pro outro clã”. Eu mereço?
Mas talvez a história mais marcante pra mim tenha sido sobre sua participação na militância. Eu sabia que meu pai tinha lecionado História quando era mais jovem, logo depois da faculdade de Filosofia. E muitos professores meus na escola diziam ter fugido da polícia durante a ditadura. Mas apesar de meu pai votar desde sempre no PT, quando pequena eu ainda tinha uma imagem dele como pacífico e careta, até. Um dia eu perguntei se ele tinha fugido, meio que tirando um barato. E ele contou que não fugiu porque não tinha conseguido, foi preso antes. Aos poucos eu fui sabendo dos detalhes, foi em 74, ele estava circulando um abaixo-assinado contra a carestia, ficou 4 meses preso, foi submetido à torturas, teve os tímpanos estourados (e portanto não suporta som alto não por ser careta, mas por uma espécie de sequela). Foi julgado e absolvido. Só recentemente fiquei sabendo que meu tios mais novos foram também presos e sofreram humilhações, como uma maneira de coagir meu pai. E ele delatou companheiros, porque não podia arriscar que machucassem seus irmãos (sua irmã, em especial - e vocês podem imaginar que tipo de ameaça fizeram). Meu pai estava sendo preparado para entrar na luta armada, mas depois do trauma da prisão, e principalmente da culpa pelo sofrimento dos irmãos, abandonou a militância. Mas é muito enfático em dizer que, sim, ia pegar em armas se fosse o caso, porque os tempos eram outros. E alguém acha que vai mudar meu voto me mandando e-mail que chama a Dilma de terrorista... Em 2004, quando o golpe completou 40 anos, vi o meu pai chorar pela 1ª vez na vida. Chorou 2 vezes na mesma semana, lembrando da tortura a que pessoas conhecidas foram submetidas.
Como o último parágrafo foi pesado, deixo uma coisa leve pro final. Porque meu pai é muito leve, apesar de tudo; ele não arrasta peso pela vida. Por conta de um erro, coisas da roça, de quando se registravam as crianças todos juntas depois de muitos anos, a certidão de nascimento do meu pai traz a data de 02 de setembro, e não 8, como comemoramos. E dia 3 liguei pra minha mãe pra tirar um barato, perguntar se meu pai sabia que podia pegar ônibus de graça. E ele já tinha ido lá, providenciar a carteirinha de gratuidade para idosos. É ou não é um subversivo fofo?

(Marido fez aniversário ontem. E não ganhou post exclusivo, pelo menos não ainda. Marido, fica com ciúme não, tá?).

11 comentários:

  1. Faz um favor? Dá um abraço grande no seu pai e fala que foi a Rita que mandou? Parabéns! Feliz aniversário do seu pai!!!

    Beijo
    Rita

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  2. Eu ia apenas ler as postagens atuais dos blogs que sigo, que recomendo, que sou fã. Mas eu não poderia deixar de comentar pelo menos aqui hoje.

    Parabéns pro seu pai, Iara! Ele de fato é um fofo.
    P.S.: Seu pai me lembrou meu avô agora. Voinho é de uma serenidade incrível. Acho que não é tão subversivo qnt seu pai, mas em mim ficou a sensação de que o seu é bem tranquilão assim como meu meninão.

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  3. Tão bacana o orgulho que vc sente pelo seu pai! Em cada linha da pra sentir isso. Beijo!!

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  4. Adorei o post. Seu pai deve ser um cara bem legal. Parabéns pra ele e pra vc. :) Não escrevo mais pq fiquei manteiga derretida com esse post.

    Bjs!

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  5. Meninas todas,

    Obrigadas pelos parabéns, vou transmiti-los ao aniversariante. Como vocês puderam notar, eu sou realmente muito coruja e orgulhosa. Dá pra notar até relendo o post, pelo estilo: eu uso "meu pai, meu pai" o tempo todo. Porque, né? É o que eu gosto mais mesmo, que ele seja meu pai... =)

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  6. Ai, que lindo! Parabéns pro seu pai, Iara :)
    E como já disseram aí em cima: dá pra ver em cada linha o amor e admiração que você sente por ele :]

    Virei fã do seu pai!

    :*

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  7. Nossa! Que legal. Seu pai é super! Um abraco pra ele. Teu post é todo lindo!
    Bjo

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  8. ai, que filha mais babona! heheheh se derreteu todinha agora. mas tambem, teu pai tem uma historia muito legal, parece mesmo ser um homem muito interessante.

    e que coisa cruel ter que entregar os amigos pra salvar a familia, hein. ele deve pensar nisso com grande frequencia. nao sei o que eh mais dificil: ficar calado e aguentar a dor ou entregar os amigos e vender os irmaos. :(

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  9. Post lindo. Seu pai é mesmo um fofo. Fico imaginando o que ele sente vendo uma guerrilheira chegando na presidência da república...

    Beijocas

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  10. Melina,

    Obrigada! E junte-se ao clube: todos os sobrinhos são fãs do meu pai.

    Ana Flávia,

    Obrigada plo abraço e pelo elogio.

    Luci,

    Eu babo muito mesmo. E sobre a tortura, acho que ele evita pensar. No mais, ele tem muito claro quem eram os vilões, e a situação limite que viveu. Uma vez li em algum lugar uma crítica a algum político do PT que, na época, tinha delatado companheiros depois da tortura. E meu pai comentou muito tranquilo que ele também tinha feito isso, que não teve escolhe, então não admitia esse tipo de julgamento.

    Dani,

    Obrigada! Nunca comentei exatamente sobre isso. Na verdade, meu pai vai votar no Plínio, porque ele já tá achando o PT muito dentro do esquema capitalista. Mas sei que ele respeita muito o passado da Dilma, claro.

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  11. Que história mais linda a do seu pai! Fiquei encatada e emocionada lendo seu post. Olha, tô na fila aí para mandar um beijão para ele - anda tão saidinha - de feliz aniversário atrasado!

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