Domingo passado eu e Daniel almoçamos na Feira da Praça
Kantuta. A feira acontece todos os domingos no Pari, exatamente enfrente ao
lugar onde cursei o Ensino Médio, que hoje se chama Instituto Federal de
Educação Tecnológica – mas que eu chamo carinhosamente só de “a Federal”
(porque na minha época era “a escola”, não “o instituto”).
Mas na minha época não havia feira e a praça sequer tinha
esse nome. E não tenho a menor ideia de como a praça se chamava. A Praça
passou a chamar-se Kantuta há uns 10 anos, quando começou a feira, uns 4
ou 5 anos depois de eu deixar a escola. Katuta é a flor que empresta
suas cores para a bandeira da Bolívia. Na Praça funciona um centro de apoio aos
imigrantes bolivianos, que passaram a montar barracas de comidas típicas (pra
serem consumidas lá ou ingredientes para prepará-las) e a coisa foi crescendo. Eu já sabia da existência dessa feira há algum tempo, pensava
em conhecê-la, mas foi uma matéria no caderno de comida do Estadão (estamos
recebendo o jornal de a graça em casa por um mês, aquelas promoções pra te
convencerem a assinar) que me levou a finalmente visitá-la.
Quando chegamos, aquela coisa linda. Uma praça que
provavelmente estaria triste e meio abandonada sendo tomada pelas pessoas, sendo vivida. Crianças correndo entre as barracas enquanto os seus pais
trabalham ou se divertem. Comoveu-me especialmente por ser tomada por uma
população marginalizada, como são os imigrantes bolivianos.
É claro que como futura imigrante latino-americana em terras
estrangeiras sou suspeitíssima pra falar. Mas eu nunca entendi mesmo a
xenofobia. Se as pessoas vêm pra cá se sujeitar a condições de trabalho terríveis
é porque a economia, como funciona hoje, absorve isso. Eu me lembro dos meus
pais contando como tem gente que se escandaliza com a sugestão de que
funcionários da saúde pública aprendam um pouco de espanhol pra atenderem esta
população. Acham um absurdo que o dinheiro público seja investido para atender
imigrantes muitas vezes ilegais. Como se eles não pagasse ICMS cada
vez que compra uma lata de óleo ou pegam o metrô pra ir lá se divertir na praça
aos domingos. Gente que acredita piamente que o estado de bem estar social da Escandinávia
é só mérito deles, não tem absolutamente nada a ver com a pobreza, sei lá, das
Filipinas. Como se o mundo não fosse uma coisa só e as pessoas não tivessem o
direito de tentarem se defender com alguma dignidade seja onde for.
Sou muito tímida (acreditem) pra puxar assunto com quem eu
não conheço. Queria saber se as moças da barraca de comida onde comemos o
majadito (uma carne desfiada com molho no arroz, servida com banana assada, ovo
frito e mandioca – gostoso, mas nada demais) trabalham em fábricas de segunda a
sábado, como acredito. Acho que há muita gente ali nessa situação, trabalhando
de segunda a segunda, tentando conseguir no domingo algum dinheiro pra guardar
ou enviar pra família, o que seria difícil demais só com o salário. Mas elas
estavam muito ocupadas e eu fiquei com medo de ser invasiva.
Voltando a feira em si, fica lá uma espécie de animador com o
microfone dizendo coisas em um espanhol quase incompreensível de tempos em
tempos. Há barracas com milhos dos mais variados formatos. Batatas brancas e
rajadas, pacotes de erva mate e cerveja Paceña, pão de milho. Nossa entrada foi
uma salteña deliciosa em uma das barracas mais “ricas”: Don Carlos tem uma
barraca enorme e aparece gente pra comprar caixar enormes de salteñas e levar
pra casa. Pelo capricho das embalagens pra viagem, imagino que ele seja o primo próspero do lugar. Compreensível, dada a qualidade da salteña.
Uma coisa nos chamou demais a atenção: três ou quatro tendas
de “peluquería”, ou seja, cabelereiros. Pela extravagância dos penteados das fotos
do lado de fora, imagino que a necessidade do serviço apareceu não só pelos
preços praticados aqui, mas pela dificuldade de comunicação enquanto as
expectativas de resultados (eu já cortei cabelo fora do país, dá um pouco de
medo mesmo).
Por fim, outra curiosidade: tendas com publicidade da Western
Union. Até ir pra França eu sequer sabia o que era Western Union, porque seu
principal negócio é a comissão sobre as remessas de imigrantes para seu país de
origem. E o Brasil do crescimento econômico passou a receber muitos imigrantes.
Vemos todos os dias notícias de estrangeiros vindo tentar a sorte aqui. Entre eles
europeus super qualificados. Mas jovens brancos de classe média alta são sempre
bem recebidos, né? Já os bolivianos pobres cujos traços não escondem sua etnia
são vistos com desdém (racistas? nós?).
Eu acho mesmo um alívio que eles tenham
encontrado um espaço nessa cidade tão hostil, que a Praça Kantuta possa
acolhê-lhos, em uma cidade que não acolhe os pobres, mesmo os nascido aqui. Transformaram
a Praça Kantuta em um espaço tão rico e oferecem diversidade cultural a uma cidade
tão intolerante. Plantam kantuta colorida no concreto (clichês cafonas, trabalhamos). Como não ser grata?
Ai, Iara, que post fofo. Adorei. E que bom que você não se esqueceu de ressaltar nossa xenofobia seletiva, mais uma vergonha pro nosso rol.
ResponderExcluir(Tô só esperando vc me contar pra onde cês vão. #curiosa)
Beijos, linda
Rita
Pra Inglaterra, Rita. Mas não pra Londres, pra região de Liverpool. Daniel vai trabalhar em uma fábrica da Airbus no país de Gales, bem na fronteira. Devemos estar por lá daqui há umas 6 semanas.
ResponderExcluirIara, adoro esse seu jeito de escrever, meio contando história, meio fazendo uma análise crítica sempre pertinente. Só há poucos dias soube da feira Kantuta, estou curiosa para ir. Beijos
ResponderExcluirBrigada pelo elogio, Ceci! Olha, fiquei imaginando você por lá toda feliz com sua câmera, caçando ingredientes diferentes. Acho que você vai curtir.
ResponderExcluirAi que eu amo as empanadas dessa barraca, todo um atendimento fofo quando vou lá, e gosto de ver os adolescentes fazendo as coreografias das dancinhas típicas.
ResponderExcluirAh, e claro, lá vende leite evaporado, coisa que a Nestle não faz por aqui.
Eu também adorei e fiquei com vontade de ir passear nessa feira (e comer salteña, claaaro) com você. :*
ResponderExcluirque tal fazer seu bota fora lá na Praça Kantuta? :)
ResponderExcluirIara, adorei o post! A Feira Kantuta na minha opinião é um dos lugares mais especiais de Sampa!
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