Há algumas semanas houve uma grande comoção pública gerada pelo vídeo que mostrava uma mulher torturando até a morte um cachorrinho. Até eu, que nunca tive um animal de estimação, que nunca fui especialmente ligada a animais e sequer assisti “Marley e eu”, fiquei chocada com a crueldade que as imagens denunciavam. Não endossei o discurso do empalamento em praça pública (dentre outras modalidades de pena de morte mais ou menos civilizadas exigidas pela turba), mas acho que essa senhora deve responder pelo crime que cometeu, claro.
Semana passada recebi links no Facebook e no twitter que denunciavam o assassinato de uma criança indígena por madeireiros no Maranhão. A corpo da criança foi encontrado carbonizado. Ante as diversas dúvidas de quem não encaminhava o link com a notícia e o ceticismo daqueles que pediam confirmação por mais fontes, alguns começaram a dizer que uma criança indígena teria menos valor na nossa sociedade do que um cachorrinho de raça. Mas em algum momento na minha timeline a pergunta que me parece mais certeira neste caso (e que eu não vou lembrar quem fez, desculpem): “Quantas crianças indígenas sem vídeo valem um yorkshire com vídeo?”
Ninguém me convence que as pessoas (pelo menos a imensa maioria delas), não se sensibilizariam com a história de uma criança assassinada como se sensibilizaram com a do cachorro. Mas o vídeo é o “x” da questão. O vídeo cristaliza e eterniza o sofrimento do pobre animal. A gente pode dar replay e a cada vez prestar atenção num detalhe sórdido diferente: a voz da agressora, que há uma criança ao fundo, até a cor dos azulejos. Pode se perguntar quem o filmou. Pode construir todo o cenário que nos prova que isso aconteceu ante a nossa descrença.
Mas falemos do índio. Por mais que nos gere indignação, sabemos que muitas crianças são vítimas de torturas dentro de casa, e muitas morrem por isso. Então, fosse a notícia que uma criança foi assassinada pelos pais, a comoção seria grande, mas não haveria muito lugar para descrença. A violência doméstica faz parte do nosso universo, das coisas que nos revoltam mas estão aí, no mundo. Agora qual o percentual de pessoas que acessa a internet e repercutiu a história do cachorro que entende os conflitos que acontecem entre indígenas e aqueles que querem explorar suas terras cotidianamente no país? Ínfima, com certeza. Das bem informadas, das que sabem que lideranças indígenas e operárias são assassinadas diariamente, quantas não acham que atear fogo numa criança ainda viva (foi assim que a notícia chegou pra mim) é barbárie demais até pra este mundo tão triste? Porque o ceticismo passa por aí: ninguém quer acreditar. Esperando essa confirmação absoluta, essa fonte mais-do-que-confiável, podemos fingir que vivemos num mundo em que nem o mais cruel dos homens queimaria uma criança.
Daí vem o problema. Essa criança morta não vai ter vídeo testemunhando. Como não têm vídeo pra servir-lhes de testemunha cada criança que morre de fome, cada mulher estuprada, cada vítima de violência doméstica. As mortes de crianças vítimas de conflitos armados não são transmitidas ao vivo, como foram os atentados de 11 de setembro. E claro que não ignoro a variante da identificação da classe média que faz com que a notícia de um assassinato cometido durante um assalto num semáforo seja percebida de uma maneira completamente diferente da chacina de 8 jovens na periferia. Mas ela só reforça a minha tese: só têm o benefício da empatia aqueles cujas vozes repercutem.
Aprendemos na escola que o ocorrido com a humanidade antes da invenção da escrita é difícil de se conhecer porque não ficou registrado, daí chamar-se pré-história. Com certeza havia muito que contar, e perdemos uma parte importante do nosso passado por falta de registro na medida em que hierarquizamos o registro escrito como mais confiável para reproduzir a realidade do que a transmissão oral. Acredito que estamos vivendo algo parecido com as imagens hoje: se uma imagem vale mais do que mil palavras, não basta me contarem o que aconteceu. Não basta um e-mail, uma denúncia formal. Pra que eu fique indignada, preciso de imagens, senão simultâneas, pelo menos posteriores, uma foto da vítima, algo que sensibilize. Mas nos esquecemos que mesmo imagens podem ser tiradas do seu contexto, adulteradas, manipuladas. Isso acontece o tempo todo, confiar cegamente em imagens também nos induz ao erro.
Pra mim a única solução para minimizar a injustiça causada pela hierarquização das informações que chegam a nós é a democratização do acesso à informação. Conheci pelas Blogueiras Feministas o trabalho do Intervozes, que está engajado nessa luta. Recomendo muito o vídeo deles sobre a concentração da mídia no Brasil:
Porque se não acredito que as pessoas se importem menos com uma criança do que com um cachorro tenho certeza de que uma criança indígena é menos representada pela mídia do que bichinhos de estimação de classe média. E isso faz muita diferença para a nossa construção de mundo.
Tem dores que não saem no jornal, como diz a música. E uma das coisas que a gente aprende sobre o que sai no jornal é que ter um "personagem" é muito mais eficiente - para comover - que qualquer estatística. Mas eu fico preocupada com a maneira como estamos sentindo essas dores, como se em algum momento elas pudessem se anular ou se só pudesse doer uma coisa de cada vez (e foi nesse sentido meu comentário no Twitter).
ResponderExcluirMuito importante o que você colocou sobre comunicação. Vou mandar pro autor do vídeo :)
Iara, confortador ler seu post. Há dias em que me sinto morrendo em outros me sinto endurecendo e não sei qual dos dois me assusta mais.
ResponderExcluirIsso, Iara. Texto sensato, focado num ponto importante da discussão. É claro que a ideia de uma criança sendo queimada viva me traz aquela sensação de esvaziamento, de falta de referência ("em que mundo vivo?"); imediatamente depois, numa escala imaginária para tentar me expressar, veio, nos primeiros dias em que a notícia circulou no twitter, um enorme espanto pelo fato de a coisa não estar sendo alardeada na grande mídia. Talvez eu precise apenas enxergar o fato como sinal dos tempos no que se refere à forma como as notícias circulam em tempo de internet; mas minha primeira sensação foi de que o caso não estava ecoando em lugar nenhum. Que as pessoas se importavam menos, que não estavam interessadas, que a notícia "não vendia". Sei lá. Tentei não acreditar, viu. Torci muito para ser tudo uma série de histórias desencontradas. Mas, né.
ResponderExcluirBeijo
Rita
O que dizer depois de ler o artigo e assistir o vídeo? Parabéns pela postagem.
ResponderExcluirBelo texto. Parabéns.
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